Cinema brasileiro na redemocratização: entre o escapismo e a denúncia
Cinema brasileiro na redemocratização: entre o escapismo e a denúncia
Enquanto comédias populares e pornochanchadas dominavam as bilheterias, filmes que confrontavam a ditadura militar conquistavam espaço e público nos anos 1980, marcando o início da redemocratização no Brasil.
Publicado 15/03/2025 11:00 | Editado 17/03/2025 11:36

Na virada dos anos 1970 para os 1980, o Brasil vivia sob os estertores de uma ditadura militar que já perdia fôlego, e os cinemas brasileiros viviam um momento de contradições e transição. Enquanto produções leves e acessíveis, como os filmes cômicos de Os Trapalhões (com média de 3 milhões de espectadores por produção) e as irreverentes pornochanchadas como A Dama do Lotação (2,6 milhões de ingressos) garantiam o lucro das salas de cinema, uma onda de produções políticas emergia como resposta ao autoritarismo. O paradoxo era claro: em plena abertura “lenta, gradual e segura”, o público consumia tanto o entretenimento leve quanto narrativas ácidas sobre tortura, censura e resistência.
Desta forma, um cinema despojado dominava as bilheterias com suas propostas de entretenimento escapista, enquanto longas de cunho político e social começaram a emergir como uma força significativa no cenário cinematográfico. Mesmo sob o regime militar, o público demonstrava interesse por filmes que, de forma sutil ou direta, denunciavam as mazelas e repressões do autoritarismo. Essa dualidade reflete um momento de transição, em que a população buscava tanto o escapismo quanto a reflexão sobre a realidade política do país.
Esses filmes, muitos deles críticos ao regime militar que ainda estava em seus estertores, não apenas marcaram a história do cinema nacional, mas também conquistaram públicos expressivos, refletindo o clima de abertura política e o desejo coletivo por memória e justiça. Dados da época revelam que Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias, que retratava a tortura durante o regime, atraiu 1,2 milhão de espectadores, rivalizando com blockbusters estrangeiros. Já Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman, adaptação da peça de Gianfrancesco Guarnieri sobre greves operárias, registrou 750 mil ingressos – número expressivo para um drama social.
A convivência entre esses dois extremos – o humor descompromissado e a seriedade das denúncias históricas – revelava o momento de transição que o Brasil atravessava. Por um lado, havia a necessidade de evasão diante das dificuldades econômicas e sociais; por outro, crescia o anseio por narrativas que ajudassem o país a compreender e processar os traumas da ditadura.
O triunfo do escapismo: Trapalhões e pornochanchadas
Os anos 1980 foram marcados pelo sucesso estrondoso das produções dos Trapalhões, grupo de comediantes liderado por Renato Aragão (Didi), Dedé Santana, Mussum e Zacarias. Filmes como Os Trapalhões na Serra Pelada (1982) e Os Saltimbancos Trapalhões (1981) atraíam multidões aos cinemas, especialmente famílias e crianças, oferecendo um alívio cômico em meio à crise econômica e política do período.
Paralelamente, as pornochanchadas continuavam sendo um fenômeno cultural, mesmo após seu auge nos anos 1970. Produções como A Ilha dos Paqueras (1981) e As Prostitutas (1982) mantinham seu público cativo, explorando temas de sexo e humor picante. Embora criticadas pela crítica intelectual por sua qualidade técnica e roteiros simplistas, essas películas eram baratas de produzir e garantiam lucros consistentes para as distribuidoras nacionais. Também expressavam um jeito muito próprio de fazer cinema no Brasil, com deboche e uma liberdade sexual que destoava do ambiente opressivo. Seu sucesso mostra que também serviam de espelho para uma grande parcela dos brasileiros com sua linguagem popular, direta e sacana.
Esses filmes representavam uma forma de entretenimento que, embora pouco engajada politicamente, respondia às demandas de um público ávido por distração num contexto de turbulência social.
A força da memória: filmes que enfrentavam a ditadura
Ao mesmo tempo, uma nova geração de cineastas começou a emergir, determinada a confrontar o legado autoritário do regime militar. Esses filmes, muitos deles baseados em eventos históricos ou obras literárias, trouxeram à tona temas sensíveis como tortura, repressão, corrupção e lutas operárias. Apesar de seu tom crítico e, às vezes, sombrio, essas produções conseguiram atrair grandes públicos, provando que o cinema brasileiro tinha espaço para narrativas profundas e urgentes.
Um marco inicial foi Os Anos JK (1980), dirigido por Silvio Tendler. O filme retratava a era do presidente Juscelino Kubitschek, destacando tanto seus avanços quanto suas contradições, e serviu como uma espécie de ponte entre o passado desenvolvimentista e os questionamentos do presente. Ao revisitar o idealismo dos anos 1950, criticava indiretamente o autoritarismo vigente. Tornou-se o 3º documentário mais visto da história do Brasil, com 1 milhão de espectadores.
Logo em seguida, Eles Não Usam Black-Tie (1981), adaptação da peça teatral de Gianfrancesco Guarnieri e dirigida por Leon Hirszman, tornou-se um dos maiores sucessos da época. Com sua análise das lutas sindicais e da alienação proletária, o longa ressoou com trabalhadores e intelectuais, consolidando-se como um símbolo da resistência cultural contra a opressão.
Outro destaque foi Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias, que usava a Copa do Mundo de 1970 como pano de fundo para explorar as tensões sociais e políticas do Brasil sob a ditadura. A frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”, slogan da propaganda oficial da época, ganhou novos significados ao ser colocada sob escrutínio no enredo do filme.
Nos anos seguintes, outros títulos ampliaram essa tendência. Memórias do Cárcere (1984), baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos e dirigido por Nelson Pereira dos Santos, mergulhou nas prisões políticas dos anos 1930, mas fez paralelos evidentes com o regime militar. Mesmo sob censura, esses filmes usavam metáforas e arquivos históricos para furar o bloqueio.
Já Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, revisitou a trajetória do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em 1962, em um trabalho híbrido de documentário e ficção que se tornou referência no cinema brasileiro e considerado um dos melhores filmes do cinema universal. Coutinho retoma o filme 17 anos depois do golpe e reconstrói de forma épica e comovente a trajetória interrompida daqueles camponeses perdida naqueles anos de chumbo.
Finalmente, Jango (1984), dirigido por Silvio Tendler, reconstruiu a vida e o governo de João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. Além de alcançar grande público, o filme contribuiu para reavivar debates sobre a legitimidade do regime autoritário e a necessidade de democracia plena. O documentário de impacto atraiu 800 mil pessoas às salas.
Por que o público lotava as sessões?
Analistas apontam três fatores para o sucesso das obras engajadas:
- Fome por verdades suprimidas: com a anistia de 1979 e o debate sobre “abertura”, a sociedade buscava compreender os traumas da ditadura.
- Apoio de redes alternativas: circuitos universitários, sindicatos e cineclubes ajudaram a distribuir títulos censurados ou pouco divulgados.
- Linguagem acessível: documentários como Jango misturavam arquivo histórico e depoimentos emocionais, enquanto dramas como Pra Frente, Brasil usavam suspense para abordar a tortura.
Não era um fenômeno isolado: em 1984, ano da campanha Diretas Já, o filme O Homem que Virou Suco (1981), denúncia contra exploração trabalhista, ainda atraía plateias em reprise.
Esses filmes não apenas denunciavam os horrores da ditadura, mas também ajudavam a moldar a memória coletiva do Brasil. Ao trazer à luz episódios esquecidos ou silenciados, eles incentivavam a população a refletir sobre o passado recente e a lutar por mudanças estruturais.
O legado contraditório: entre o apagão e a influência atual
No entanto, é importante notar que esse tipo de produção enfrentava desafios enormes. Além da censura ainda ativa, muitos cineastas tinham de lidar com orçamentos limitados e infraestrutura precária. Mesmo assim, suas obras encontraram eco em um público sedento por autenticidade e sentido.
Apesar do sucesso, esse cinema militante enfrentou dois vetores de apagão: O fim da Embrafilme em 1990, que retirou apoio estatal ao cinema engajado. E a ascensão da TV Globo e do cinema comercial nos anos 1990, que relegou parte dessas obras ao esquecimento.
Todavia, sua influência permanece. Documentaristas como Petra Costa (Democracia em Vertigem) e ficções como Bacurau (2019) retomam o espírito de crítica social e política daquela geração. Enquanto isso, plataformas como Curta! e Amazon Prime reeditam clássicos como Cabra Marcado para Morrer, provando que, 40 anos depois, o diálogo entre cinema e democracia segue vivo – e necessário.
O papel do cinema na redemocratização
O cinema brasileiro dos anos 1980 deixou um legado ambivalente, mas profundamente significativo. De um lado, os filmes dos Trapalhões e as pornochanchadas proporcionaram momentos de leveza e descontração, funcionando como válvulas de escape em tempos difíceis. De outro, as produções que denunciavam a ditadura abriram portas para uma nova consciência política e cultural, pavimentando o caminho para a plena redemocratização.
O sucesso desses filmes evidenciou a capacidade do cinema como veículo de resistência e de transformação social. Apesar dos desafios impostos pela censura e pelo ambiente repressivo, os cineastas encontraram formas criativas de abordar temas controversos e mobilizar a opinião pública. Esse legado não apenas contribuiu para o processo de redemocratização, mas também influenciou gerações posteriores de cineastas, que passaram a ver na sétima arte uma poderosa ferramenta de crítica e de construção da memória histórica.
Hoje, esses filmes são vistos como parte fundamental da história do Brasil – um testemunho visual de uma época em que o país oscilava entre o riso e a dor, entre o esquecimento e a memória.