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Decisão do STF sobre mortos e desaparecidos pela ditadura tem forte conteúdo democrático e humanístico

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Decisão do STF sobre mortos e desaparecidos pela ditadura tem forte conteúdo democrático e humanístico

 

STF abre caminho para reavaliar crimes da ditadura militar, fortalecendo a luta por justiça e reparação. Decisão reforça compromisso democrático e enfrenta resistência da extrema-direita

 

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o julgamento da aplicação da Lei da Anistia aos chamados “crimes permanentes”, praticados pela ditadura militar, como sequestro e ocultação de cadáver, previstos no Código Penal, tomada por quase unanimidade (apenas o ministro André Mendonça não se manifestou), tem grande importância para a luta democrática.

Chamada de “repercussão geral”, conforme nominação da Emenda Constitucional 45/2004 que define apreciação de recursos extraordinários, a discussão foi proposta pelo ministro Flávio Dino, relator da matéria. Ele havia decidido, em 15 de dezembro de 2024, que o caso deveria ter repercussão geral, citando o exemplo do deputado cassado Rubens Paiva, desaparecido político, retratado no filme Ainda estou aqui.

Com a decisão, depois do julgamento do mérito em data ainda não prevista, será possível reavaliar casos concretos, como o de Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura, tenentes-coronéis do Exército, denunciados pelo Ministério Público Federal, em 2015, por homicídio qualificado e ocultação de cadáver durante a Guerrilha do Araguaia, no começo dos anos 1970. É uma revisão da decisão do Supremo em 2010, que, por sete votos a dois, reconheceu a constitucionalidade da Lei da Anistia, rejeitando pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para anular a anistia a agentes do Estado que praticaram atos de tortura. Agora será debatida se a decisão se aplica aos casos de ocultação de cadáver.

A decisão do STF faz parte das tarefas democráticas inconclusas e se constitui numa ação importante para punir as atrocidades cometidas pelo Estado sob domínio da ditadura militar, num total de 434 pessoas mortas, dentre elas 243 desaparecidas (apenas 35 foram localizados), conforme o Relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014. Também contribui para a reconciliação das Forças Armadas com a consciência democrática da nação, o que cria condições mais propícias para que possam cumprir seu importante papel constitucional de defesa nacional, sobretudo nessa conjuntura mundial conturbada, com a política dos Estados Unidos de ameaçar a soberania dos países.

Cumpre, também, o papel de dar mais um passo na resposta aos familiares, organizações sociais e partidos políticos na batalha pela localização dos desparecidos políticos e punição dos crimes cometidos. Essa é uma grande lacuna no processo de redemocratização do país. Vem da histórica luta por verdade e justiça, desde que surgiram, em 1975, os primeiros movimentos efetivos por anistia, Assembleia Constituinte e abolição das leis repressivas da ditadura.

Sobretudo após a Lei da Anistia, houve uma peregrinação na busca dos desaparecidos, como a caravana pela região da Guerrilha no Araguaia, em outubro de 1980, composta por familiares, dirigentes e militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ideia surgida no 2º Congresso Nacional pela Anistia, realizado em novembro de 1979 em Salvador, Bahia, com o lançamento do Manifesto dos familiares dos mortos e desaparecidos do Araguaia.

A síntese dessa luta é o desabafo de João Luis Morais, pai de Sonia Maria de Morais Angel Jones, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) assassinada pela ditadura, cujos restos mortais foram identificados e, no dia 12 de agosto de 1991, sepultados no Rio de Janeiro: “Há um sentimento profundo e interior que nos leva a prosseguir nesta luta para encontrar os nossos mortos. Não há cura para esta dor, mas ficamos aliviados ao levar para a sepultura parentes queridos.”

Em 10 de dezembro de 2024 – Dia Internacional dos Direitos Humanos –, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou a “Equipe de identificação de mortos e desaparecidos políticos”, instituída pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. A iniciativa também representa um passo adiante dessa luta histórica, que avançou significativamente em 1995, quando o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, assinou a lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos.

Mas o Estado ainda deve ao povo e à história o conhecimento dos fatos ocorridos durante a ditadura com o sigilo sobre os arquivos daquele período, que precisam ser abertos para que se tenha mais informações sobre os mortos e desaparecidos, na busca para que sejam sepultados em túmulo honroso. Assim como o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 2010, de que o Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento de guerrilheiros do Araguaia, garantindo os direitos à justiça, verdade e memória.

São dívidas de natureza democrática e humanística que imperativamente precisam ser resolvidas. O STF, neste caso, ao buscar cumprir o que a Constituição lhe ordena, avança na direção correta. É certo que no contexto de força da extrema-direita no Brasil e no mundo haverá, como já começou, a reação dos herdeiros dos porões de tortura e execução da ditadura. Daí que é indispensável ampla mobilização social e democrática para respaldar o STF para que ele possa fazer, efetivamente, valer tão importante decisão.