Ações recentes reacendem busca por verdade e justiça para crimes da ditadura
Ações recentes reacendem busca por verdade e justiça para crimes da ditadura
Na esteira de “Ainda Estou Aqui”, iniciativas jogam luz sobre os abusos do regime. Numa das mais relevantes, PGR pede análise ao STF sobre legalidade da Lei da Anistia
Publicado pelo Portal Vermelho
O filme “Ainda Estou Aqui” é um exemplo de como a arte pode levantar questões relevantes sobre a história de um país — mesmo num momento ideologicamente adverso —, e abrir brechas para que aspectos não resolvidos sejam novamente pautados no debate público.
Desde que passou a lotar salas de exibição e ganhar prêmios que figuram entre os mais importantes do mundo cinematográfico, a obra vem explicitando à sociedade, aos que viveram ou não aqueles anos tenebrosos, as dores causadas pelo regime militar de 1964-1985. E um dos aspectos mais relevantes desse processo é que o filme parece ter se transformado num elemento de peso na luta pela verdade, a memória e a justiça.
Abandonado nos anos em que o Brasil foi “governado” por Michel Temer e Jair Bolsonaro, o assunto vem sendo retomado e, neste sentido, o filme pode estar contribuindo para “furar a bolha” do espírito do tempo — mais alinhado às ideias da extrema-direita — e mexer com as engrenagens institucionais que, a seu ritmo, parecem reagir às suas necessárias provocações.
Lei da Anistia em foco
Nesta terça-feira (28), por exemplo, a Procuradoria-Geral da República (PGR) deu um importante passo nesse sentido ao encaminhar solicitação ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que seja analisada a legalidade da aplicação da Lei da Anistia (6.683/1979) no caso dos cinco militares acusados pela morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, durante o período ditatorial.
Em abril de 2010, o STF reafirmou a validade da Lei de Anistia para “perdoar” crimes comuns cometidos no contexto ditatorial. Mas, pouco depois, em novembro do mesmo ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado brasileiro por crimes da ditadura cometidos no caso Araguaia.
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Entre outros pontos, a sentença declarou a invalidade da Lei de Anistia no que diz respeito, por exemplo, ao acobertamento de crimes como os desaparecimentos forçados, situação do ex-deputado. Oficialmente, conforme os dados levantados pela Comissão Nacional da Verdade, 434 pessoas foram mortas ou estão “desaparecidas” por ação do regime.
Este é um dos pontos que vêm sendo questionados há muitos anos por juristas, acadêmicos e especialistas no assunto: o de que a lei não poderia anistiar crimes que se estendem no tempo, como é o caso de um desaparecimento.
E foi essa a linha de argumentação usada pela subprocuradora Maria Caetana Cintra Santos, responsável pelo parecer encaminhado ao STF. “O crime de ocultação de cadáver, imputado aos denunciados na ação penal originária, não seria suscetível da anistia instituída na Lei 6.683/1979 (Lei de Anistia), tendo em vista seu caráter de permanência porquanto nunca se revelou o paradeiro do corpo, impedindo, assim, a consumação do lapso temporal prescricional e o consequente trancamento da ação penal”, escreveu.
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A PGR aponta como acusados de envolvimento na morte de Rubens Paiva os militares reformados José Antônio Nogueira Belham, Jacy Ochsendorf, Jurandyr Ochsendorf, Rubens Paim Sampaio e Raymundo Ronaldo Campos — os três últimos já falecidos.
Segundo as investigações realizadas até hoje, o ex-deputado foi morto em janeiro de 1971, nas dependências do Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Rio de Janeiro.
Crimes posteriores à lei
O parecer encaminhado ao STF vai ao encontro do posicionamento adotado pelo ministro da Corte, Flávio Dino.
No final do ano passado, ao se debruçar sobre denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal em 2015 contra ex-militares que participaram das ações de cerco e aniquilamento da Guerrilha do Araguaia no início dos anos 1970, Dino, relator do caso, ressalvou que não tinha o objetivo de revisar a decisão de 2010. Mas, salientou que “a aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia”.
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Especificamente sobre o caso Rubens Paiva, havia duas ações no STF, uma das quais foi encerrada. A outra, de 2021, segue tramitando e tem como relator o ministro Alexandre de Moraes.
Outro passo importante para esses novo ambiente foi a resolução, aprovada no final do ano pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), determinando que sejam retificadas as certidões de óbito de pessoas reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) como mortas ou desaparecidas durante a ditadura militar. A decisão atende a uma proposta do Ministério dos Direitos Humanos.
A retificação da certidão de Rubens Paiva, aliás, foi uma das lutas travadas por sua viúva, Eunice Paiva, que se transformou numa das principais ativistas contra a ditadura e em defesa dos direitos humanos do Brasil, vivida com maestria por Fernanda Torres em “Ainda Estou Aqui”. Em 1996, ela finalmente conseguiu obter a certidão de óbito do marido. No entanto, constava apenas que ele tinha desaparecido em 1971.
Com a decisão do CNJ, o falecimento passou a ser descrito como decorrente de causa “não natural; violenta; causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Há poucos dias, o Ministério dos Direitos Humanos e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos — retomada por Lula em 2023 após ser extinta no governo Bolsonaro — anunciaram que pretendem realizar, possivelmente no mês de abril, uma cerimônia de pedido de desculpa oficial por parte do Estado brasileiro às famílias de Paiva e dos demais mortos e desaparecidos durante a ditadura.
Na falta de um processo de justiça de transição entre a ditadura e a democracia com o julgamento e a punição dos culpados por esses crimes, obras culturais, ações de resistência e iniciativas como essas e outras tomadas ao longo das últimas décadas trazem consigo o condão de, ao menos, resgatar e contar a história tal qual ela ocorreu, mostrando às atuais e futuras gerações que a democracia, ainda que imperfeita e limitada, deve ser aprimorada e preservada, mas nunca suprimida.