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Transporte público caro e ruim abre caminho para disputa por mototáxis

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Transporte público caro e ruim abre caminho para disputa por mototáxis

 

Uber e 99 disputam contra Prefeitura de São Paulo por mototáxis. Pesquisador de relações de trabalho indica que movimento ocorre porque o transporte coletivo não é prioridade

 

Foto: Divulgação/99

Neste início de ano as plataformas Uber e 99 iniciaram na cidade de São Paulo o serviço de transporte de pessoas por motocicletas, popularmente conhecidos como ‘mototáxis’. Este movimento das empresas ocorreu apesar de um decreto municipal que proíbe a atividade.

Mesmo com decisões contrárias as empresas continuaram operando entre idas e vindas neste mês de janeiro. Na última segunda-feira (27), nova decisão, agora da 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), referendou a proibição do decreto e as empresas informaram que irão suspender as atividades.

Mas isto momentaneamente, pois as plataformas já indicaram que irão recorrer da decisão. Este é mais um capítulo sobre as novas relações de trabalho que surgiram com a chegada das plataformas digitais, que evidentemente trouxeram oportunidades de renda para a população, mas também evidenciaram um cenário de superexploração do trabalho e de ausência de direitos.

No caso específico do trabalho em motos existe um agravante: o alto grau de periculosidade para piloto e passageiros. Isto porque o trânsito de São Paulo é um dos mais caóticos e hostis para motociclistas. Dados do Infosiga-SP, sistema do Governo de São Paulo coordenado pelo Detran-SP, indicam que em 2024 houve 483 óbitos de motociclistas, aumento de 19,8% em relação ao ano anterior.

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Para entender melhor este campo de disputa, o Portal Vermelho conversou com o pesquisador de relações de trabalho e plataformização Felipe Moda. Para ele, esta tentativa de emplacar esse novo serviço ocorre porque em São Paulo o transporte coletivo é deixado de lado: “Caso tivéssemos na cidade uma política séria de priorização do transporte coletivo, com redução/gratuidade nas tarifas, ampliação das linhas e dos corredores de ônibus e um sistema de transporte sobre trilhos que atendesse a todos os bairros, possivelmente não estaríamos hoje debatendo o serviço de mototáxi”.

Moda, que é doutorando em Ciências Sociais pela Unifesp, ainda explica como funciona o modus operandi das plataformas neste início de serviço, procurando atrair mão de obra com bons retornos financeiros em busca de criar um monopólio na prestação do serviço. Posteriormente isso muda, com a diminuição do valor pago aos mototáxis quando as empresas já estiverem estabelecidas, assim como ocorreu com o transporte por carros.

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Na entrevista o pesquisador também fala sobre os riscos que a atividade pode trazer, caso seja efetivada na cidade, e da responsabilidade do prefeito, Ricardo Nunes (MDB), em enfrentar a situação também com investimentos no transporte público – o que não fez até agora.

Confira abaixo a entrevista com Felipe Moda:

Portal Vermelho: Como avalia a situação em que 99 e Uber oferecem o serviço de mototáxi na cidade de São Paulo a despeito de um decreto da Prefeitura que impede a atividade? Acredita que a prefeitura pode ceder nesta queda de braço?

Felipe Moda: É um grande absurdo que empresas desrespeitem deliberadamente as instâncias do poder público municipal. Por mais que possamos debater as vantagens e as desvantagens do serviço de mototáxi, a necessidade ou não da existência deste serviço em São Paulo, hoje existe um decreto municipal sobre o tema que as empresas abertamente desrespeitam ao invés de buscarem dialogar com a população para adequar as leis municipais.

Este desrespeito por parte das empresas possivelmente ocorre porque sabem que o prefeito costuma ceder às suas chantagens. A primeira atitude tomada por Ricardo Nunes sobre o tema já foi péssima. Ele aumentou o número de blitz e passou a apreender a motocicleta dos trabalhadores que estavam realizando este tipo de serviço, penalizando assim o elo mais fraco do sistema ao invés de aplicar multas nas empresas.

Com este caso temos mais um exemplo de como empresas proprietárias de tecnologias digitais utilizam o seu poder para impor seus interesses mesmo quando contrariadas pelo poder público. E esta atitude por si só já traz uma série de riscos sociais que merecem ser debatidos com bastante atenção.

O preço dos transportes públicos da cidade (Metro e trem R$ 5,20 e ônibus R$5,00) e a qualidade dos mesmos são fatores que influenciam na adesão dos paulistanos aos mototáxis?

Com certeza. Desde a chegada do transporte por aplicativo via automóveis na cidade, a população que mais utiliza este serviço é a residente das áreas periféricas, que faz isso porque o transporte coletivo muitas vezes não chega até próximo a sua residência, pelo fato deste transporte ser demorado e desconfortável e porque por vezes é mais barato pegar um carro por aplicativo para a família ou dividindo com amigos do que pagar a passagem de ônibus/trens/metrô.

E não à toa a 99 lançou o seu serviço de mototáxi logo após o aumento do preço das tarifas e em um momento que o tempo de deslocamento gasto no transporte coletivo vem aumentando na cidade, elementos que criam uma maior demanda por este tipo de serviço. Caso tivéssemos na cidade uma política séria de priorização do transporte coletivo, com redução/gratuidade nas tarifas, ampliação das linhas e dos corredores de ônibus e um sistema de transporte sobre trilhos que atendesse a todos os bairros, possivelmente não estaríamos hoje debatendo o serviço de mototáxi.

Quais são as principais preocupações com a oferta do serviço? As empresas falam que as corridas são cobertas por seguro e seguem um protocolo de atendimento, com até mesmo suporte financeiro em caso de acidente. É possível confiar nisto dado o histórico de falta de apoio dessas mesmas empresas (na modalidade com carros) e de outras que trabalham com entregadores de motocicleta?

O serviço de mototáxi já existia de forma clandestina na cidade. Em alguns bairros da periferia já existiam motoqueiros que prestavam este serviço para a população, levando-a até as estações de trem/metrô ou para o trabalho. Porém, isto é totalmente diferente do que irá ocorrer daqui para frente caso a 99 e a Uber passem a oferecer este serviço de maneira generalizada para a população.

Felipe Moda. Foto: Arquivo Pessoal

Isso porque as “empresas plataformizadas” possuem o seguinte modo de operar: primeiramente, elas buscam criar monopólio na prestação do serviço e, para tanto, irão oferecer inúmeras vantagens para mototaxistas e passageiros utilizarem os seus serviços. As corridas serão bem baratas e os motoqueiros irão receber um valor relativamente alto para prestar o serviço, medidas que irão garantir que o serviço ganhe adesão da população. Após formarem um grande contingente de consumidores e prestadores de serviço, as empresas passam a sistematicamente a rebaixar as condições de trabalho, com o intuito de recuperarem os custos investidos para a implementação do serviço e garantirem seus lucros. Daqui um ano teremos inúmeros relatos de mototaxistas falando que para ganhar o mesmo que estão ganhando hoje estão precisando trabalhar por mais horas ou aumentando a velocidade para fazer mais corridas no mesmo período de tempo. É só neste momento que teremos real dimensão do impacto deste serviço na cidade e, muito possivelmente, teremos um grande aumento do número de acidentes envolvendo motociclistas.

Este seguro que as empresas disponibilizam já existe para os motoristas de veículos e entregadores e são bastante insuficientes. Primeiro porque geralmente eles funcionam no sistema de reembolso com despesas médicas ou hospitalares, ou seja, o trabalhador necessita conseguir pagar o seu tratamento e depois pedir o reembolso para a empresa. E para conseguir este reembolso é um processo bastante burocrático, necessita provar que estava em rota no momento do acidente, ele não vale para momentos que o motorista está entre uma viagem e outra etc. Assim, são medidas pouco eficazes perante o risco que permeia ficar o dia todo rodando no trânsito caótico de São Paulo.

O que esta nova modalidade de serviço, que se utiliza de motos, pode representar para o já caótico trânsito de São Paulo?

Como acabei de dizer, o real impacto do oferecimento do serviço de mototáxi de forma generalizada por estas empresas só serão sentidos daqui alguns meses ou anos. O mais provável é que tenhamos um aumento do número de acidentes envolvendo motociclistas e também maiores taxas de trânsito.

Caso o serviço realmente siga operando no município será necessário pensarmos em uma série de medidas que visem a sua regulamentação para evitar estes resultados. Podemos, por exemplo, exigir um tempo mínimo de habilitação e treinamento específicos para o transporte de passageiros para que um motociclista possa trabalhar nesta função, além de adotarmos mais medidas de controle de velocidade.

O diretor de Comunicação da 99, Bruno Rossini, disse ao Fantástico que nestes dias em que estão operando com motos “a maioria das corridas começa ou termina a 100 m de uma estação de transporte público” e que “58% dos passageiros nessa primeira semana de funcionamento foram mulheres e regiões periféricas”? Na sua visão, o que estes dados indicam?

Estes dados possivelmente são corretos e indicam os problemas do transporte coletivo na cidade. A expansão das linhas de trem e metrô ocorre em ritmo extremamente lento e há uma grande desigualdade no tempo gasto no transporte coletivo por moradores da região central em relação aos moradores das regiões periféricas. O mapa da desigualdade de 2024, por exemplo, indicou que um morador de Pinheiros gasta em média 25 minutos em deslocamento por transporte público, enquanto quem reside em Marsilac gasta 71 minutos.

Todavia, também existem inúmeros dados que indicam que o deslocamento por motocicletas é mais perigoso do que o realizado pelo transporte coletivo e não podemos deixar na mão destas empresas “resolver” o problema da mobilidade urbana na cidade. O poder público deve aumentar seus investimentos no setor para não perpetuar uma lógica de que moradores das regiões periféricas devam se submeter a meios de transporte mais letais para chegarem até seus compromissos pessoais. E a ação do Ricardo Nunes de quase ausência na construção de novos corredores de ônibus e de aumentar o valor das tarifas está colaborando para esta situação.