Sem categoria

CFM entra na Justiça contra cotas na formação de médicos, ignorando desigualdades

Spread the love

CFM entra na Justiça contra cotas na formação de médicos, ignorando desigualdades

 

Conselho médico manteve perfil bolsonarista na última eleição e enfrenta resistências de nova geração de médicos atacando principais pautas de democratização do acesso à saúde

 

Pelourinho é cenário de fotos de estudantes de medicina da UFBA. Fotos: @afroalef e @luallem

O Conselho Federal de Medicina (CFM) ingressou recentemente com uma ação civil pública contra a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), contestando a reserva de 30% das vagas para pessoas com deficiência, indígenas, negros e moradores de quilombos no Exame Nacional de Residência (Enare). O caso foi apresentado à 3ª Vara Cível de Brasília, no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), e evidencia uma oposição a políticas de inclusão e diversidade na formação de especialistas da saúde.

Em sua nota, o CFM argumenta que as cotas representam “vantagens injustificáveis” e “discriminação reversa”, sustentando que a seleção para residência médica deveria basear-se exclusivamente no “mérito acadêmico de conhecimento.” No entanto, a justificativa ignora que as políticas de ações afirmativas, amparadas legalmente e endossadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), buscam compensar disparidades históricas de acesso e garantir uma representação demográfica mais inclusiva na medicina, especialmente em regiões e comunidades marginalizadas.

A Ebserh, responsável pela organização do Enare e vinculada ao Ministério da Educação, defendeu a legalidade e a importância das cotas. Segundo a estatal, a política de reserva de vagas para grupos sub-representados está de acordo com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e representa um esforço para garantir que o acesso às residências médicas e multiprofissionais seja mais representativo da diversidade demográfica do país.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) também expressou apoio à inclusão de políticas afirmativas no Enare, enfatizando que o acesso à pós-graduação e às residências em saúde continua profundamente desigual no Brasil. “O acesso às diferentes modalidades de pós-graduação, inclusive às residências em saúde, ainda é extremamente desigual, com sub-representação das pessoas negras (pretas e pardas), indígenas e pessoas com deficiência”, afirmou a Fiocruz em nota. Esses comentários destacam um problema persistente: a elitização da medicina e a exclusão histórica de determinados grupos.

Alinhamento conservador do CFM

A ação do CFM contra as cotas se insere em um contexto mais amplo, marcado por sua aliança com agendas conservadoras e políticas restritivas, principalmente desde o governo Bolsonaro. Em agosto, foi eleita uma nova diretoria do conselho, em sua maioria composta por chapas de perfil conservador, que abraça pautas políticas e ideológicas, como restrições ao direito ao aborto legal, pautas “pró-vida” e a defesa de práticas sem comprovação científica, como o uso da cloroquina para tratar a COVID-19.

A reação negativa do CFM às cotas é consistente com uma postura conservadora e elitista observada em outras decisões recentes do órgão, cujo posicionamento se aproxima de ideologias de direita e práticas excludentes. A campanha de alguns candidatos foi abertamente marcada por apoio a figuras políticas e por uma retórica contra movimentos progressistas, o que reflete a crescente influência do bolsonarismo nas esferas da medicina e na própria organização do conselho.

Raphael Câmara, um dos líderes desse movimento e figura central no CFM, promoveu iniciativas para limitar o direito ao aborto, inclusive articulando a chamada “resolução dos 22 semanas,” que buscava definir um prazo máximo para abortos legais em casos de estupro. A medida foi suspensa pelo STF, que a considerou uma extrapolação das funções do CFM, mas inspirou projetos de lei que tentam restringir ainda mais os direitos reprodutivos no Brasil. Este alinhamento entre o CFM e a agenda conservadora levanta sérias preocupações sobre a autonomia do órgão, tradicionalmente comprometido com princípios éticos e científicos, em meio a um cenário de politização crescente.

Esse alinhamento do CFM com posturas reacionárias e a ausência de uma agenda progressista é motivo de crítica. Dos 54 novos conselheiros eleitos, apenas 12 são mulheres, e, em várias chapas, há pouco ou nenhum foco no Sistema Único de Saúde (SUS) e na promoção de políticas de saúde pública inclusivas. As discussões sobre saúde preventiva e imunização estão visivelmente ausentes dos programas das chapas vencedoras, refletindo a falta de atenção do CFM às necessidades de saúde pública do país.

A luta por representatividade e Inclusão no campo médico

A crescente resistência contra o caráter elitista do CFM tem mobilizado uma nova geração de médicos que reivindicam um conselho mais plural e comprometido com a realidade da saúde pública brasileira. Médicos progressistas reconhecem que, embora a eleição deste ano tenha resultado na predominância de chapas conservadoras, a mobilização em torno de um movimento progressista na medicina nacional é um avanço importante.

Foi a primeira grande eleição com a participação de chapas de oposição. A resistência aos desmandos do CFM continuará, particularmente em um contexto em que a necessidade de políticas de saúde pública e de inclusão se torna cada vez mais urgente.

A Ebserh, responsável pela gestão de 45 hospitais universitários federais, respondeu que as cotas são parte de um esforço para tornar a formação médica mais representativa e inclusiva, em linha com a diversidade da população brasileira. Apoiada por instituições como a Fiocruz, a Ebserh vê na inclusão uma forma de tornar o Sistema Único de Saúde (SUS) mais acessível e plural.

Em um contexto onde a maioria dos médicos ainda é branca e de classe média alta, as cotas buscam reduzir o abismo de representatividade no setor e contribuir para uma medicina mais igualitária. A crítica do CFM ignora o fato de que a presença de profissionais de diferentes origens sociais e étnicas não se limita a preencher cotas, mas colabora diretamente para a formação de médicos com maior compreensão das realidades das comunidades brasileiras.

O posicionamento do CFM contra as cotas no Enare reforça sua desconexão com a realidade de um país onde o racismo estrutural e a exclusão social impactam diretamente a formação de profissionais de saúde. A ação contra as cotas evidencia a resistência de setores tradicionais e elitistas a medidas que buscam democratizar o acesso à formação médica e contribuir para a redução das desigualdades. Mais do que uma disputa judicial, essa é uma luta por um modelo de saúde mais inclusivo, representativo e comprometido com a diversidade da sociedade brasileira.

Autor