Contraponto com Halloween impôs concorrência hostil ao Dia do Saci
Contraponto com Halloween impôs concorrência hostil ao Dia do Saci
Nosso Saci merece reverência. De todos os personagens do folclore brasileiro, talvez apenas o Curupira esteja à sua altura em termos de simbolismo.
Publicado pelo Portal Vermelho
À luz do tempo, é necessário avaliar a ideia de comemorar o Dia do Saci Pererê em 31 de outubro, como contraponto à celebração norte-americana do Dia das Bruxas, o Halloween. Nosso Saci merece reverência. De todos os personagens do folclore brasileiro, talvez apenas o Curupira esteja à sua altura em termos de simbolismo.
Originalmente com duas pernas e traços ameríndios, o Saci absorveu outras mitologias. Por influência africana, virou menino negro, perdeu uma das pernas na capoeira e passou a usar pito. O gorro vermelho – que lhe deu poderes sobrenaturais – vem do folclore português. É justamente esse sincretismo de tantas culturas que torna o Saci tão brasileiro.
Desde 1965, o Brasil já comemora, a 22 de agosto, o Dia do Folclore, que tem origem estrangeira. Remete a 22 de agosto de 1846, data em que a expressão folk lore (“conhecimento popular”) veio a público pela primeira vez, na carta do arqueólogo e escritor britânico William Thoms à revista The Atheneum. Falta-nos, porém, uma data comemorativa mais genuinamente nacional, o que reforça a razoabilidade do Dia do Saci.
A proposta de sua criação ganhou força em 2003, ano de fundação da Sosaci (Sociedade de Observadores de Saci). Na visão da entidade, fixar o “raloim brasileiro” em 31 de outubro, como alternativa ao Halloween ianque, ajudava a “resgatar” o folclore nacional e a fazer uma resistência cultural à invasão estrangeira.
O impacto foi imediato. Municípios e estados abraçaram a causa e aprovaram em lei o Dia do Saci. Na Câmara dos Deputados, três parlamentares – Aldo Rebelo, Ângela Guadagnin e Chico Alencar – apresentaram propostas para instituir a data nacionalmente.
“A intenção deste projeto é ensinar as crianças que o País também tem seus mitos, difundindo a tradição oral, a cultura popular e infantil, os mitos e as lendas brasileiras”, justificava o projeto da deputada Ângela Guadagnin (PT-SP). “Em vez de bruxas e gnomos, a manifestação cultural deve valorizar figuras folclóricas que se refiram às tradições brasileiras.”
Em sua propositura, Aldo Rebelo, então deputado pelo PCdoB-SP, era mais explícito: “O Saci é reconhecido como uma força da resistência cultural à invasão dos xmen, dos pokemons, os raloins, e os jogos de guerra. A escolha do dia 31 de outubro, que tem sido imposto comercial e progressivamente aos brasileiros como o Dia das Bruxas ou o Dia do Halloween, não dizendo absolutamente nada sobre o nosso imaginário popular cultural, como o Dia do Saci, é assim estratégica, proposital, simbólica”.
O fato é que nenhum dos três projetos na Câmara dos Deputados vingou – e o Dia das Bruxas tampouco saiu arranhado. Não há lei ou decreto federal sobre o Dia do Saci. Forçar o contraponto com Halloween podia até ser uma escolha “estratégica, proposital, simbólica”. Mas essa escolha, em vez de resultar em trunfo, parece ter imposto uma concorrência hostil ao próprio Saci Pererê. Ao bônus da polêmica, somou-se o ônus de alguma antipatia gratuita.
De resto, há uma razão para que hoje seja o Dia das Bruxas. Reza a lenda que nas noites de 31 de outubro, véspera do Dia de Todos os Santos e antevéspera do Dia de Finados, os mortos ficavam especialmente ávidos para voltar à terra. Os vivos, amedrontados, espantavam os maus espíritos de duas maneiras: acendendo uma fogueira e se fantasiando de mortos. Essa combinação de elementos celtas e cristãos está na origem do Halloween.
Talvez as datas comemorativas careçam desse vínculo mais orgânico. O movimento negro brasileiro foi bem-sucedido na batalha para transformar 20 de novembro em Dia da Consciência Negra. Ao pôr o 13 de Maio – e a “história oficial” – em xeque, lideranças negras desmascararam a Lei Áurea e a Princesa Isabel, ressignificaram o abolicionismo e cristalizaram um herói popular, Zumbi dos Palmares, como protagonista da luta contra a escravidão.
Não convém usar o condicional “se” para cravar certezas, mas é provável que a sorte do Dia do Saci tenha mudado com sua associação ao 31 de outubro. Celebremos, sim, o Saci Pererê e os vários elementos de sua mitologia que ajudaram a dar singularidade e renome ao folclore brasileiro. Mas, ao mesmo tempo em que é preciso desarquivar projetos que propõem a instituição formal do Dia do Saci, é tempo também de questionar se uma data mais pertinente à homenagem não teria lhe dado um destino melhor.