Castro Alves, o poeta dos homens livres
Castro Alves, o poeta dos homens livres
Foram 24 anos de vida onde não caberia uma obra eterna, em qualquer pessoa no mundo. Ele, que tantas vezes foi chamado de “o poeta dos escravos”, em equívoco e preconceito insultuosos, é, pelo contrário, o poeta dos homens livres.
Publicado pelo Portal Vermelho
“Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!”
Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847 e faleceu em 6 de julho de 1871. Foram 24 anos de vida onde não caberia uma obra eterna, em qualquer pessoa no mundo. Ele, que tantas vezes foi chamado de “o poeta dos escravos”, em equívoco e preconceito insultuosos, é, pelo contrário, o poeta dos homens livres. E por falar em preconceito, não é demais lembrar que a posteridade lhe deu traços de homem branco, assim como se fez com Machado de Assis, Padre Vieira, e outros gênios. Em dúvida, olhem o seu retrato de homem da pele do Brasil e transformado em homem branco para os livros didáticos dos estudantes brasileiros.
Há um preconceito de séculos que reescreve a sua história, de poeta dos escravos a poeta branco. Mas o que importa agora, nestas linhas, é o seu lugar de poeta de homens e mulheres livres, e do seu lugar único na poesia brasileira.
Machado de Assis escreveu sobre o gênio de Castro Alves em fevereiro de 1868, isso quando o poeta ainda possuía 20 anos:
“A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo d’esses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas ideias com roupas finas e trabalhadas… “.
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Manuel Bandeira, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, analisou definitivo a poesia de Castro Alves:
“Ao livro ‘Os Escravos’ pertenceriam ‘Vozes d’África’ e ‘O Navio Negreiro’, os dois poemas em que o poeta atingiu a maior altura de seu estro. O que indignava o poeta era ver que o Novo Mundo, ‘talhado para as grandezas, pra crescer, criar, subir’, a América, que conquistara a liberdade com formidável heroísmo, se manchava no mesmo crime da Europa.
Em Castro Alves, o épico social desmedindo-se em violentas antíteses, em retumbantes onomatopeias. A este último aspecto há que levar em conta a intenção pragmática dos seus cantos, escritos para serem declamados na praça pública, em teatros ou grandes salas —, verdadeiros discursos de poeta-tribuno…. E há que reconhecer nele…. a maior força verbal e a inspiração mais generosa de toda a poesia brasileira”.
Em mais de um lugar já li que é importante um escritor evitar o engajamento panfletário. Falam até que a literatura engajada é a antiliteratura (!!!). Mas essa opinião sobre literatura engajada é comum em novas gerações acadêmicas, que reduzem a visão do mundo da arte a “linguagem”. A defesa da vida, segundo os participantes da nova onda, deve ficar para o discurso político, em outra instância e lugar. E assim caminham para uma literatura asséptica, de palavras em sua pura ausência da realidade suja, fora da defesa de pessoas e do mundo.
Mas o que é o engajamento panfletário? Será aquele em que a revolta contra a ordem injusta do mundo aparece nas páginas de uma obra? Então haveríamos de expurgar do conhecimento humano um poema como O Navio Negreiro. E aqui bem caberia a ressalva de que toda grande obra literária é panfletária, que nos perdoem os mais puros estetas. Mas este não é ainda o momento de mostrar o panfletário em Tolstói, Graciliano Ramos, Drummond, e até mesmo em Machado de Assis, pasmem
No entanto, mais de um crítico já considerou o verso “brisa do Brasil beija e balança” como um dos mais belos de toda a língua portuguesa. Trata-se de uma aliteração, que repete o B, bela e magnífica, sem dúvida, Mas prefiro outros versos do poema.
Há escritores que são lembrados por uma só obra, embora tenham escrito outras. Quem me chega de imediato à memória é Juan Rulfo, com o seu imortal Pedro Páramo. Na poesia brasileira, para não cometer o sacrilégio de lembrar João Cabral de Melo Neto apenas, “apenas” por Morte e Vida Severina, temos Augusto dos Anjos com Eu e Outras Poesias, que foi mesmo o seu livro único. Mas no caso de Castro Alves, autor de tantos poemas, para expressar melhor a sua altura e gênio, bastaria lembrar O Navio Negreiro. “Bastaria” com muitas aspas, se fosse possível. Pois já no começo do seu fundamental e inesquecível poema, Castro Alves prepara o voo para uma altura até hoje nunca alcançada por nenhum poeta brasileiro:
“Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas”
Esse chamamento não é passageiro, retórico vazio. Pois logo veremos por que Castro Alves pede as asas do albatroz em lugar dos deuses invocados por outros poetas.
“Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais… inda mais… não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral!… Que tétricas figuras!…
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!….
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ….”
E que altura o poeta atinge:. Eu escrevi dois pontos após a frase anterior, mas o que merece é ponto de exclamação: que altura o poeta atinge!
“Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!… Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares”
Nós, homens comuns, quase diria, nós, homens vulgares em mais de um sentido, bem que podíamos melhorar nossa estatura humana com a admiração ao poeta dos homens e mulheres livres. Salve a sua poesia, salve a sua genial indignação, salve a sua grande arte, salve a sua poesia engajada. Numa palavra, salve Castro Alves!