Sem categoria

Três anos de pandemia: Brasil foi o segundo país que mais sofreu com a covid

Spread the love

Três anos de pandemia: Brasil foi o segundo país que mais sofreu com a covid

 

Ao chegar a 700 mil mortes pela covid-19 no Brasil, epidemiologista aponta os erros que levaram Manaus e todo o país a se tornarem um laboratório a céu aberto para o mundo

 

Protesto pelos cem mil mortos da pandemia na praia de Copacabana, organizado pela ONG Rio de Paz, em agosto de 2020. (Foto: Ong Rio da Paz)

Perto dos 700 mil mortos por covid, o Brasil se situa no gráfico do Worldometer e do OurWorldInData em 20°. lugar entre 231 países com mais mortos, proporcionalmente a sua população, com uma média de 3.250 mortos por milhão. O Peru aparece em primeiro com 6.500, o dobro do Brasil. Isso significa, que, num país menor que o estado de São Paulo (33 milhões de habitantes), quase toda família viu um ente querido morrer.

Tirando os pequenos países, com menos de 10 milhões de habitantes, o Brasil torna-se o oitavo com mais mortes da lista. Muitos dos países que aparecem entre os primeiros colocados, na lista, são europeus com uma população dominante de idosos. Muitos deles perderam grande parte de sua população idosa no início da pandemia com a disseminação do vírus em asilos, por exemplo.

No entanto, da mesma dimensão do Brasil só sobram os EUA. Desta forma, pensando em termos epidemiológicos, a comparação com os EUA é a mais viável. Países com uma população jovem como o Brasil e os EUA não deveriam estar entre os mais atingidos pela pandemia, mas permaneceram nesta liderança de 2020, até agora.

“Brasil e EUA são os que pior conduziram a gestão da pandemia”, diz o epidemiologista da FioCruz-AM, Jesem Orellana, em entrevista ao Portal Vermelho. Estudos feitos em várias partes do mundo demonstram que, liderados por Donald Trump e Jair Bolsonaro, estes países tiveram os governos que mais negaram a resposta científica à pandemia. Todo o acúmulo científico aprendido em diversas pandemias ocorridas na história da humanidade foi solenemente ignorado por estes governos.

Pior que isso, em vez de estimular protocolos reconhecidos como o uso de máscaras, distanciamento social e estímulos financeiros para lockdowns, foram governos que prescreveram medicamentos por conta própria, com intuito de favorecer laboratórios farmacêuticos. Inócuos, os medicamentos podiam até contribuir para acelerar o agravamento do doente, em alguns casos.

Com a possibilidade da imunização emergindo, foram governos que pregaram contra a vacinação e que atrasaram o financiamento e aquisição desses imunizantes. No caso do Brasil, o país inverteu os sinais, pois era exemplo no mundo todo dos melhores indicadores de vacinação, vigilância epidemiológica e saúde pública gratuita do mundo.

Leia também: Três anos de pandemia: 2023 será marcado pela declaração de endemia no Brasil

Laboratório a céu aberto

Imagens de valas comuns de mortos pela covid em Manaus se espalharam pelo mundo. Foto: Alex Pazuello/Semcom/Prefeitura de Manaus

O epidemiologista aponta esta questão da descoordenação federal como o principal fator para o Brasil estar entre os países mais sofridos com a pandemia. “O Brasil é o único que tem Manaus, capital mundial da covid”, ressalta ele. “É um dos poucos países que tiveram aproximadamente 4.200 mortes em um mesmo dia. É dos poucos países que teve colapsos da rede médica hospitalar em diferentes regiões do país”, complementa.

O cenário de Manaus é atípico porque se manifesta dentro de uma conjuntura e um contexto de vários equívocos no gerenciamento da epidemia, tanto por parte dos tomadores de decisão, secretários de saúde, fundações, como por parte da população.

Orellana enfatiza que, não é por acaso que Manaus é a única capital do Brasil onde se consegue confirmar a quinta onda de contágios e casos graves de covid-19 do Brasil. Algo que não se vê com clareza em outras capitais do país, que podem estar sofrendo um aumento associado à sazonalidade, uma oscilação natural na circulação do vírus, com pico seguido de queda.

No Amazonas e em Manaus, isso é muito claro, com aumento de 15 para 120 pacientes internados em todo o estado, em meados de janeiro de 2023. O epidemiologista salienta que, embora seja quase dez vezes maior, o número está muito longe dos 2 mil internados em janeiro de 2021, durante a crise de oxigênio.

“Mas este caso de Manaus serve como um emblema do que pode acontecer se continuarmos relaxando. É o que tenho dito, desde o começo da pandemia, que, infelizmente, Manaus funciona como uma espécie de laboratório a céu aberto da pandemia”.

Orellana observa que estudos internacionais procuram o caso amazonense para saber “o que Manaus está fazendo para fazer o contrário”. “Realmente é um lugar que as pessoas observam para ver o que acontece e não cometer os mesmos erros. A gente poderia dizer que, se está acontecendo em Manaus, tem que acontecer em Porto Velho (RO), em Belém (PA), mas não acontece”, afirma.

Ele pontua os problemas sanitários mais evidentes de Manaus e do Estado. Menciona o fato de ter um sistema de vigilância epidemiológica muito ruim, assim como a vigilância laboratorial. Tem uma atenção primária voltada à identificação e acompanhamento precoce de casos péssima, assim como a rede hospitalar. Quase não tinha leito habilitado, reconhecido pelo Ministério da Saúde, até o final do ano passado, e nada de UTI adulto no interior do estado. Tem as menores coberturas vacinais do país e ondas de contágio que se manifestam claramente.

A pandemia sob o governo Bolsonaro, é para ele, uma situação dramática e uma das piores experiência epidêmicas da história da saúde pública do Brasil.

“Precisamos virar a chave e mostrar para as Américas e para o mundo, que temos experiência acumulada em saúde pública em campanhas de vacinação e que isso não vai voltar a acontecer.

Aconteceu muito em função desse governo negacionista, anticiência, antisaúde pública, e acima de tudo, antivida”, lamentou.

Um grande erro

Orellana consegue destacar no meio do caos sanitário que vigorou no Brasil, um grande erro com impacto enorme para as 700 mil mortes. “Sem nenhuma dúvida, eu sinalizaria a produção de vacinas de forma relativamente independente. O Brasil erra gravemente ao associar sua produção de vacina ao laboratório da Astrazeneca. Uma vacina que foi muito questionada, proporcionalmente gera mais reações adversas do que vacinas como a Sputnik V que também é feita a partir da tecnologia de vetor viral. Além de ter apresentado muito mais reações do que a vacina chinesa produzida no Instituto Butantan, a Coronavac”, criticou.

Dentro desta linha do fator imunológico, ele acredita que o desmonte da indústria farmacêutica nacional fragilizou muito a resposta vacinal. Até países pobres e menores como Cuba foram capazes de criar suas vacinas. O Brasil poderia ter produção própria para contribuir com a exportação para países mais vulneráveis.

“A gente erra no nosso complexo tecnológico industrial. Depois, mesmo sabendo desse erro, o Brasil tem uma segunda chance de se antecipar e comprar vacinas e distribuir o mais rápido possível. Isso também não aconteceu”.

Desta forma, Orellana avalia que nosso erro foi muito voltado à produção e desenvolvimento do nosso complexo tecnológico industrial de vacinas. “Avançamos pouquíssimo na pandemia e principalmente na aquisição e distribuição oportuna de vacinas. Tenho certeza que se tivéssemos investido nessas duas frentes, nossos indicadores não seriam tão ruins hoje”, calcula.

Ele pondera que, olhando o desempenho do Brasil nos primeiros seis meses da pandemia, – em que ninguém sabia de nada -, não era tão ruim. “O que acontece é que nós temos um desempenho pavoroso, a partir do primeiro ano de pandemia, inclusive com uma quantidade de mortes inaceitável em plena vacinação. Não é possível ter, no início de 2022, aproximadamente 20 mil mortes nas primeiras oito semanas, um ano depois de iniciada a campanha de vacinação no Brasil”.

Lição ecológica

Essa pandemia trouxe uma mensagem clara para a humanidade, no início, e que parece que esquecemos. É o que busca lembrar Orellana, com a volta do “velho normal” após três anos de pandemia. Embora se falasse de forma idílica sobre a necessidade de mudança de hábitos ecológicos e da proteção do meio ambiente, no início da catástrofe sanitária, todos ficaram aliviados de voltar a fazer tudo que fazia, como sempre foi feito.

Ele está falando de muitas doenças novas que são decorrentes de interações evitáveis com animais silvestres e selvagens, porque estamos destruindo áreas de floresta, com alta cobertura vegetal, e facilitando este tipo de contato entre homens e patógenos.

Esta foi a principal hipótese de surgimento do novo coronavirus. “Uma comercialização numa escala cada vez maior de animais potencialmente infectados, que, até então, não infectavam humanos, mas aconteceu provavelmente num mercado chinês de animais vivos um salto evolutivo do vírus, que permitiu o spillover, o salto de espécies. Sai de um determinado circuito de transmissão e passa para os homens”, explica o epidemiologista.

Embora não seja comum o comércio de animais silvestres vivos para consumo na China, em algumas localidades, como Wuhan, existia esse mercado lotado de gaiolas, em que principalmente as pessoas mais velhas, – que mantém práticas tradicionais -, buscam os animais. O que já era cercado de restrições, até então, agora foi proibido. Com os animais infectados convivendo diretamente com o ser humano em larga escala nesses mercados, ou em áreas de invasão humana a florestas, o vírus evoluiu para “aprender” a infectar o corpo humano, despreparado para vírus desconhecidos.

“Precisamos estar atentos às mudanças climáticas e principalmente as causas dessas mudanças climáticas que é esta destruição ilimitada dos nossos rios e florestas. Estes são os grandes causadores destas epidemias e pandemias”, pondera.

“Este desmatamento desregrado da Amazônia por exemplo, é uma janela enorme que se abre para estas possibilidades. No entanto, estamos acreditando que ao controlar a epidemia com vacina, não vamos ter outros problemas pela frente. Um grande equívoco”, conclui.