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Quem contrata trabalho análogo ao escravo deveria ser proibido de empreender

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Quem contrata trabalho análogo ao escravo deveria ser proibido de empreender

 

Para a juíza Valdete Severo, empresa que usa terceirizada para explorar trabalhadores nessas condições tem responsabilidade direta e ainda poderia ter patrimônio expropriado

 

Foto: Sinait

Dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) recém-divulgados mostram que o total de denúncias de exploração de trabalhadores em condições semelhantes à de escravidão feitas em 2022 é o maior em uma década. No ano passado, foram contabilizados 1.973 denúncias, contra 857 em 2012. “Os números revelam o desmanche das estruturas de prevenção às situações precárias de trabalho, promovido pelo governo Bolsonaro, que teve como um de seus primeiros atos a extinção do Ministério do Trabalho”, diz a juíza Valdete Souto Severo, titular da 4ª Vara do Trabalho de Porto Alegre.

Na avaliação da magistrada, feita ao Portal Vermelho, esses dados  também explicitam “a persistência de uma racionalidade racista em nosso país, que tem relação direta com a história de escravização e o modo como (não) lidamos, ao longo do tempo, com esse legado histórico de, por 353 anos, o discurso oficial do Estado admitir a comercialização e escravização de pessoas”.

Os dados revelados pelo UOL mostram ainda a inconstância na resposta do poder público, com aumentos e reduções nas operações de resgate nos últimos dez anos, em descompasso com o crescimento nas denúncias. Em 2022, 2.575 pessoas foram resgatadas dessas condições aviltantes.

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Esse cenário, afirma Valdete, “é reflexo da precarização das condições de trabalho, que ocorreu mesmo em governos anteriores, e de políticas públicas que deixam à margem das condições mínimas de existência digna uma boa parte da população brasileira. Aceitar oferta de trabalho sem qualquer segurança acerca da realidade que será enfrentada é consequência direta do desespero de não ter fonte de renda e precisar sobreviver”.

Ela completa dizendo que esse quadro “tem relação direta com o estímulo à terceirização, que tem como consequência a redução das condições de trabalho (inclusive porque o preço acaba sendo o principal critério de quem faz essa intermediação de força de trabalho, tanto no setor público quanto privado) e o afastamento entre o verdadeiro beneficiário do trabalho e quem o realiza”.

Expropriação do patrimônio

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Considerando esses dados e a realidade brasileira, é possível dizer que embora chocante, o caso dos 207 homens resgatados de trabalho análogo ao escravo prestado a vinícolas da Serra Gaúcha, infelizmente, não é isolado e está longe de acabar. E traduz o descaso do meio empresarial que, em busca de lucro, explora a mão de obra e depois procura se eximir de suas obrigações, jogando a culpa exclusivamente na terceirizada. Mas, “a responsabilidade é direta e autoriza a aplicação da regra constitucional de expropriação do patrimônio”, diz a juíza.

Ao escolher terceirizar, explicou, “essas vinícolas assumem a responsabilidade pelo resultado, ao tempo em que boicotam a ordem jurídica. Basta ler os primeiros artigos da Constituição para entender que tais empresas não cumprem sua função social.E, portanto, deveriam ser inclusive proibidas de continuar empreendendo”.

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Apesar de, na origem, esse tipo de exploração da mão de obra estar diretamente ligado ao passado escravocrata do país, que influenciou a mentalidade empresarial e as relações de trabalho, a reforma trabalhista, o “libera geral” nas terceirizações e o processo constante de precarização são elementos que, casados com o abandono de políticas públicas e fiscalização, contribuíram diretamente para a piora desse quadro.

O aumento desses casos escabrosos, argumenta Valdete, “tem direta relação com o estímulo dado à terceirização, tanto pela súmula 331 do TST, quanto pela lei 13.429 (terceirização da atividade-fim), e ainda pela decisão do STF sobre esse tema”. Dessa forma, e a partir desses mecanismos legais, as condições de trabalho são precarizados e cria-se “uma ideia de ‘cadeia produtiva’, na qual, na ponta, está um falso empreendedor sem condições econômicas, que explora trabalhadores de modo escravizado. Isso tem se repetido em vários setores e basta acessar os números e casos registrados para ver que todos eles ocorrem em situação de terceirização”, aponta a juíza.

No que diz respeito à possibilidade de mudanças legais com o objetivo de acabar com o trabalho análogo ao escravo, a magistrada defende que “não precisaria nenhuma alteração na legislação trabalhista que já diz que a relação de emprego se dá apenas entre dois sujeitos e, portanto, de acordo com a Constituição e com os artigos 2 e 3 da CLT, não existe espaço para terceirização”.

Nesse sentido, diz, “bastaria revogar tanto a Lei 13.467 (reforma trabalhista) quanto a 13.429, alterar o entendimento que o STF hoje mantém sobre terceirização, ou seja, proibir qualquer forma de terceirização, esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é aplicar a regra constitucional que determina a expropriação da propriedade nos casos em que se verifica a utilização de trabalho em situação de escravização ou análoga à escravização”.