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Uma condenação da tortura e morte na ditadura

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Uma condenação da tortura e morte na ditadura

 

Condenação de delegados algozes da ditadura militar é saudada por Urariano Mota com um trecho de seu romance “A mais longa duração da juventude”.

 

Monumento Tortura Nunca Mais, no Recife

A brava Procuradora da República Eugênia Gonzaga, uma mulher de quem ainda muito vai se ouvir falar, conseguiu uma histórica vitória em sua ação na Justiça contra delegados torturadores na ditadura. O feito veio na decisão da Juíza Diana Brunstein em 18/01/2023, que declarou:  “esta ação ganha maior relevo no atual contexto político do Brasil, em que a polaridade observada na disputa das últimas eleições, sobretudo a presidencial, ganhou contornos de verdadeira subversão ao resultado proclamado, com a organização de manifestações”.

Foram condenados os três ex-delegados Aparecido Laertes Calandra,  (apelidado de Capitão Ubirajara), David dos Santos Araújo (que gostava de ser chamado de Capitão Lisboa) e Dirceu Gravina (apelidado de JC, para se associar ao poder de Jesus Cristo). Deverão pagar uma indenização de R$ 1 milhão, cada um, a título de dano moral coletivo. Eles são acusados de tortura e mortes durante a ditadura militar. Dentre os seus crimes, estão a execução do jornalista Vladimir Herzog em 1975, Manoel Fiel Filho, Hiroaku Toriagoe, Carlos Nicolau Danielli, Joaquim Alencar de Seixas, Aluizio Palhano, Yoshitane Fujimori, e a tortura da militante Amelinha Teles, junto com seus filhos pequenos, em 1972.

Essa é uma notícia que exige uma saudação coletiva para as duas autoridades, Eugênia Gonzaga e Diana Brunstein, que expressam o sonho de uma justiça no Brasil. E exigiria ainda uma contextualização e denúncia do horror espalhado por esses impunes senhores até os nossos dias. Mas do meu canto, prefiro divulgar trechos do meu romance “A mais longa duração da juventude”, onde me vi obrigado a pisar esse Brasil de terror de Estado:

“É preciso força para escrever esta página. Agora compreendo que o apelo* dos poetas às musas nada tinha de retórico. Agora mesmo eu me sinto abalado. Quero dizer, triste e mergulhado em reflexão. A realidade vista, que eu soube e sei, quanto mais reflito sobre ela, mais me sinto paralisado. Vontade que tenho é de parar tudo e sair sem rumo até a praia. Lá sozinho, em absoluto silêncio, quero ficar olhando o mar. Conhecer a última hora desses companheiros, desses irmãos da nossa mesma carne e espírito, me deixa desolado. E fico à semelhança de um menino que perdeu a sua mãe em 1958: ‘Por que Deus é tão sórdido?’, ele se perguntava. Por que o homem é tão miserável e brutal? me pergunto agora, enquanto caminho na mente até o terraço de um bar e fico olhando o oceano. As ondas resplandecem ao sol, atingem verdes e espumosas a calçada, jovens e crianças gritam de felicidade, é sábado, estão de férias. Mas a sua graça e alegria não me dizem respeito. Antes, a minha dor não é compreendida pelos jovens, mulheres, homens que passam a caminhar. Enquanto eu amargo aqui outro mar, o terror sofrido por irmãos que ninguém contou. Heróis com registros apenas burocráticos. De fotos pornográficas no necrotério, nos corpos e faces arrombados à bala. Essa é uma das razões pelas quais os ex-presos políticos às vezes se calam. Ou então contam o sofrido aos pulos, aos saltos na narrativa, para o limite extremo da dor e fronteira da morte que sofreram.  Quem sofreu sabe melhor sua dor.

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E nem tanto por essa razão. Eu me refiro a outra gravidade fundamental, ao horror puro que fez saltar os olhos das órbitas, em anéis que se apertavam em torno da cabeça como um garrote vil no crânio, a “coroa de cristo” como a chamavam. Me refiro a ossos quebrados, ferros socados no ânus. Fatos assim vistos e sofridos se calam. Com um sentimento de culpa, como se a vítima fosse a culpada, ou mesmo do terror não vencido, que continuaria num reflexo de Pavlov. Dessa vez, o condicionante é a memória, que não relata para não repetir a dor.  Entendemos os saltos ou o silêncio, porque nesta página agora sinto a tentação. É paralisante refletir sobre o que soubemos e vimos. Uma paralisação que é uma inércia aparente, porque pensamos no que não pensamos, refletimos no que não refletimos, falamos cá dentro do que não falamos fora. E para dizer o mínimo em uma linha: é deprimente primeiro. Segundo, é de nos mergulhar em uma ira louca. É de dar uma revolta ainda sem expressão, por último.

Quero dizer. Eu vi nestes dias um homem em pânico. Foi rápido, mas me acompanha o que vi até agora, e penso que não me deixará mais. Eu estava no carro, por volta das oito da noite. Eu seguia para Olinda em uma rua de mão única. Súbito, um jovem surgiu como se viesse do nada, porque sem aviso, origem ou razão. Ele veio correndo por entre os carros, o corpo em fuga pela contramão. Alguns motoristas desviavam do seu vulto, outros, pelo contrário, da tribo e manada de justiceiros dirigiam o carro para cima do jovem. Ele estava sem camisa e corria, doido, daí a manobra dos senhores da ética para cima do mal. ‘Se corre, se está sem camisa, é ladrão. Vamos quebrá-lo’. Quando ele passou por entre duas filas de carros, os faróis iluminaram o seu rosto. Cabelos crespos, assanhados, pele clara, ou melhor, lembrei depois, pele pálida, de onde o sangue havia fugido. Porém o mais marcante eram os olhos, arregalados, graúdos, a boca aberta sem grito, e os olhos enormes que nada fitavam, a ninguém viam, apenas expressavam a sua última oportunidade. Passou por mim como um raio a lembrança do ‘terrorista’ caçado, na descrição da advogada Gardênia: ‘Ele estava na mesa, estava com uma zorba azul clara e tinha uma perfuração de bala na testa e uma no peito. E com os olhos muito abertos e a língua fora da boca’. Então atrás do jovem em Olinda correu uma moto com dois indivíduos de capacete, ziguezagueando pela contramão. Em menos de um minuto houve o som de pancada no carro. Mas não, foi um estouro atrás de nós. E mais duas estrondos brutos, pá, pá. Então eu compreendi que o jovem perseguido fora alcançado com a justiça dos matadores: três tiros no ladrão safado. Mas como alcançar os seus olhos, esquecer o seu branco arregalado nas órbitas? O sofrimento do terror adivinhava e fugia do destino a menos de um metro adiante. O que pode um homem que corre contra a velocidade de uma moto?  – Saltar no balé louco do corpo magro, arremeter-se na fuga do último intento, como se mais vida houvesse. Para mim, me perseguem antes dos três tiros. Para mim, são os olhos de Vargas no maldito janeiro de 1973. A simples evocação dá um gosto amargo de fel e bílis na boca. Terei, ou devo ter o refrigério de uma pausa?

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Eu quero ter paz e refletir em paz. Tento, porque me vêm as palavras Terror e Desespero. Muito além dos seus sentidos no dicionário, eu sei por que elas me ocorrem. Tenho Vargas diante de mim. No limite da decência e da dignidade, sei que ele está apavorado. Nos pequenos olhos de índio misturado ao negro, sei que ele está próximo do limite. E pior, ele tem consciência do que está próximo. Diferente dos olhos do rapaz que vi correndo no seu último minuto, louco, tonto, o jovem e o tempo, sem ter para onde ir no estranho bailado entre os carros, Vargas agora na sala da advogada Gardênia enxerga o abismo seguinte, hoje à noite ou amanhã logo cedo. O jovem brutalizado, que deixou poças de sangue na praça vizinha ao Bar Marola, para onde poderia ir? Se entrasse para a esquerda, caía no beco do Marola, se entrasse para a direita, como entrou, no largo da praça encontrava pessoas, testemunhas, quem sabe?, a salvação. Mas isso é injusto admitir, porque talvez ele não possuísse tantas opções, o seu corpo apenas tomava o lugar mais perto, uma vez que corria pela direita, a sua mão na contramão. Entrou na praça e levou o primeiro baque. Levantou pra correr e pegou mais dois, nas costas e na cabeça. E perdeu a fuga.

Diferente de Vargas agora em 1973, neste contínuo mais próximo. Ele não tem o barulho da moto no encalço. Mas os claros sinais estão dados. Ele é o terrorista seguinte para o matadouro. Até o gado sabe quando chega o seu último instante. Que dirá um homem. O boi recalcitra, não quer ir para a frente, e por isso tem que ser puxado, enganado, até que receba o golpe traiçoeiro. Como é narrado nas linhas magistrais de Tolstói sobre um matadouro:

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‘Cada vez que pegavam um novilho do cercado e o arrastavam para a frente com uma corda atada aos chifres, ele sentia o cheiro de sangue e resistia, às vezes mugindo e recuando. Arrastaram-no. Ele abaixou a cabeça e resistiu, decidido. Mas o açougueiro que ia por trás agarrou o rabo, retorceu-o, estalou a cartilagem e o boi saiu correndo para a frente, batendo nas pessoas que o puxavam pela corda, e de novo resistiu, olhando com o rabo do olho preto e a esclerótica injetada’.

Mas Vargas não é um boi. Ele sabe com a consciência mais desperta que vive as suas ultimas horas. Diferente do jovem em Olinda, ele pode fugir antes dos tiros, evadir-se, para assim impedir que o seu corpo inche, se alargue a tal ponto que não entre em um caixão. E por que não o faz? ‘Eu conversei com ele, disse que ele fugisse’, anotou a advogada Gardênia no diário. Mas Vargas lhe respondeu na sala do apartamento do Edifício Ouro: ‘Fugir não podia, ele me disse. Pela segurança da esposa e da filha’. E voltou a advogada: ‘Eu pedi que ele deixasse a criança sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil e seria também assassinada. Aí seria pior, porque a menina ficava órfã’. A primeira observação é a consciência de que será morto, porque ele resiste a que Nelinha seja ‘também assassinada’. E assim o dano seria maior: a frágil Nelinha mais a orfandade da filha. E resolve ficar e se fincar.  A segunda observação é a que dá o tamanho do terror nos olhos de Vargas: ele é um homem sozinho, está sem partido organizado naquela altura. Vargas segue na contramão: desvinculado, está só, sabe que vai cair, não tem apoio, isolado se encontra. Isso mostra a medida da infâmia, ele está sem organização clandestina, mas ainda assim será divulgado como um terrorista, que desejava o fim da democracia no Brasil. Daí vêm os seus olhos de índio crescidos, a pele morena sem cor, o rosto de varíola pálido”.

Do romance “A mais longa duração da juventude”

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho