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História Em Pedaços

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História em Pedaços – Blog do Mamede

O VERDADEIRO SENTIDO DO ROSÁRIO

(Por Luís Estevam)

A maior tradição cultural de Catalão é a Festa do Rosário. Não porque incrementa o turismo regional, mas porque envolve profundamente os moradores e os participantes do evento. O olhar, pelo lado de fora, não consegue captar o verdadeiro sentido dessa tradição e, muito menos, a importância da festa para a comunidade local.
Existem várias formas de escrever ou falar sobre a Festa do Rosário de Catalão. Alguns se limitam a relatar a sua dimensão histórica e outros o seu caráter folclórico. Geralmente apontam o sincretismo religioso da festa, o seu potencial turístico e até mesmo características étnicas e políticas do evento. Mas, são interpretações “de fora para dentro”, que não alcançam a verdadeira essência do acontecimento.
Senão vejamos.
O historiador geralmente aponta que a tradição nasceu, em Catalão, por volta de 1870, incentivada por famílias devotas a N.S. do Rosário que, inclusive, enviaram um grupo de escravos para aprendizado e treinamento em Araxá-MG. Os festejos do Rosário, na época, ganharam calendário definido, após a libertação dos escravos, sendo realizados no dia 13 de maio, tradição que perdurou até a década de 1930 em Catalão.
A igreja, onde se realizava a festa, era a Velha Matriz, até que, depois de uma permuta, a festa passou a ser realizada na velha capelinha Mãe de Deus, que desabou. De 1936 para cá, a Irmandade recebeu um terreno, doado por Enéas Fonseca, construindo vagarosamente sua igreja no Largo do Rosário, com doações e trabalho comunitário, até a década de 1950, quando foi rebocada e inaugurada. Pouco antes, em acordo firmado com os padres, a festa fora transferida de maio para outubro, para coincidir com o calendário católico de homenagem à Senhora do Rosário. Dali em diante, o evento ganhou popularidade, os ternos se expandiram e receberam, cada vez mais, novos integrantes.
Estas são informações corretas de historiadores, mas que não abordam o conteúdo religioso, mágico e social do evento.
Outros analisam a Festa do Rosário apenas no seu caráter folclórico. Como um “produto” que poderia ser aproveitado para incremento ao turismo e se transformar em fonte de renda para o município e para os envolvidos. Alegam que a Irmandade poderia se guiar como empresa e criar fontes de renda para si própria, aproveitando o potencial criativo dos dançadores e a dedicação das famílias envolvidas. No entanto, são propostas que ignoram a profundidade e a transcendência religiosa da festa e a coloca, lamentavelmente, no patamar de apenas um evento turístico no calendário regional.
Ainda, sob um olhar político rasteiro, há quem observe o acontecimento como fonte de coleta de votos. Concedem auxílios pontuais à Irmandade, objetivando obtenção de votos, o que humilha, mais ainda, os integrantes de tão grandiosa devoção.
Por fim, existem pessoas que, de forma ideológica ultrapassada, veem a festa como um “grito” dos excluídos, de pobres que demonstram insatisfação e que alcançam o seu dia de glória no mês de outubro. Sem deixar de mencionar aquelas pessoas que assistem o desfile acreditando se tratar de “festa de pretos”, que trouxeram das senzalas o feitiço e suas manifestações africanas.
No todo, são opiniões ideológicas, étnicas e carregadas de pura alienação e desconhecimento. Olhares “de fora para dentro”, mesmo por parte de alguns historiadores e de analistas sociais. Evidente que, a Festa do Rosário é muito mais que isso. É tão grande que não se deixa captar na sua inteireza.
A Festa do Rosário de Catalão deve ser vista pelo seu conteúdo e não unicamente pela sua forma. Deve ser analisada “de dentro para fora” e não o contrário.
Os ternos não são compostos por “grupos de dançadores” e sim por pessoas de uma comunidade que vive unida e se ajuda mutuamente o ano inteiro. Desse modo a festa é uma expressão de vida, família, alegria e agradecimento pelo pouco que conquistaram na sociedade. Não são dançadores, são devotos. Até porque, eles não dançam, mas rezam em cada movimento e evolução que executam. Sempre proferindo orações de agradecimento ou pedidos à Santa do Rosário.
São portadores de uma fé pura. Desconhecem o tal sincretismo religioso. Abominam o feitiço e quaisquer manifestações maldosas. Por isso, conseguem sentir energia negativa em diversos locais de travessia, como faziam os capitães de antigamente, nas esquinas, encruzilhadas, linhas de trem, fazendo sempre meia-lua em suas caminhadas. É a mágica transcendental que guia os seus passos, a pura e abnegada devoção.
A Festa do Rosário não é uma encenação teatral. É manifestação de vida de um povo, de uma comunidade unida pelo manto protetor da Santa.
Na verdade, é a maior manifestação cultural de um povo em nosso Estado. A famosa “Procissão do Fogaréu”, na Cidade de Goiás, se dá em função de uma passagem bíblica, a prisão de Jesus no Horto das Oliveiras. É uma encenação teatral importada que evoca aquele episódio, sem comprometimento dos atores ao longo do ano, que se apresentam mascarados. As “Cavalhadas” de Pirenópolis e Santa Cruz, por sua vez, encenam a luta dos cristãos contra os mouros, na forma em que foi transladada da Europa para cá. Uma batalha importada que ficou na tradição. São festejos folclóricos, bastante evidenciados no calendário turístico, mas sem interação social expressiva, entre os membros daquelas respectivas irmandades, durante o restante do ano.
Em Catalão, a Festa do Rosário é inteiramente diversa. Constitui uma expressão da vida cotidiana de seus integrantes durante o ano inteiro. É uma evocação comunitária. Uma festa feita pela comunidade, com os recursos da comunidade e para a comunidade. É um momento mágico de oração e respeito ao Rosário. Uma demonstração inabalável de fé comungada pelos integrantes a vida inteira.
Por tudo isso, a Festa do Rosário de Catalão é inimitável. Não permite cópias, porque a cada ano recebe mudanças no seu conteúdo. A forma pode ser a mesma, mas as melodias, os versos, os movimentos e batidas estão em constante aprimoramento. Tudo somente explicável na tradição, aprendizado e convivência fraterna entre os integrantes de cada terno.
Neste mês, pesados tambores e adufos, em couro de boi, ecoam pela cidade. É o povo exercitando e experimentando novas composições, novos arranjos, novos movimentos, que refletem a vida cotidiana da comunidade.
A Festa do Rosário de Catalão é, antes de tudo, um momento de criação, uma vigorosa expressão de fé, que a maioria dos espectadores e analistas não consegue alcançar. Não copiam nada de ninguém. Criam seus próprios valores, obedecem à tradição, criando novas falas, melodias, danças e encantos.
É pura magia, um milagre que se repete todos os anos em Catalão. O maior orgulho cultural da cidade!

Luís Estevam

Caixas de congos em couro de boi.

Igreja do Rosário em dia de festa.