O cartucho acima, por exemplo, nós recolhemos quando rodamos as ruas do Rio depois de tiroteios. Ele é do mesmo lote que matou Marielle. Como sabemos? Ora: porque a marcação existe.
Qual o impacto real da extinção dessas numerações?
Imagine que poderíamos simplesmente deixar de saber, por exemplo, que as balas que mataram Marielle Franco e Anderson Gomes vieram de um lote vendido para a Polícia Federal em 2006. E que as balas desse mesmo lote também foram usadas na maior chacina de São Paulo, numa disputa entre traficantes – ambas em 2015 – e num assalto no interior da Paraíba.
Como é que essa munição, que é de responsabilidade da Polícia Federal, foi parar nesses lugares?
Este tipo de informação pode sumir. E a quem interessa que não saibamos de onde vêm estas balas, para quem foram vendidas, onde deveriam estar?
O PL 3.723/2019, que incluiu o fim das marcações, foi enviado ao Congresso por Jair Bolsonaro após a derrubada de quatro dos oito decretos sobre armas que chegaram a vigorar em 2019 – o que o Ministério Público Federal chamou de “caos normativo“.
A medida que anula a obrigação da munição marcada, no entanto, passou de maneira discreta pela Câmara dos Deputados em novembro passado, tramitando com urgência. Três normas foram incluídas na calada do dia anterior à votação: o que significa que os deputados não tiveram tempo hábil para destrinchar seus efeitos práticos.
O intuito era aumentar o volume de munições que poderia estar em um mesmo lote – o que já seria horrível –, mas o deputado Leite substituiu um trecho que invalida o artigo 23 do Estatuto do Desarmamento – e, com isso, tirou a obrigatoriedade da marcação das munições. Se foi astúcia ou uma cabeçada, não saberemos. Hoje em dia, pode tranquilamente ser qualquer uma das duas coisas.
O projeto enviado por Jair deveria determinar as regras para o porte de armas dos colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os chamados CACs. Mas o deputado paulista deu essa ajudinha – a quem?
Na nossa reportagem do ano passado, quando explicamos que recolhemos 137 cápsulas em 27 bairros do Rio para entender de onde vêm as balas, mostramos que a maioria delas (94) foi fabricada aqui no Brasil.
Identificamos, por exemplo, a origem de um cartucho disparado no dia 3 de julho de 2018 em um tiroteio entre policiais da UPP de Manguinhos, na zona norte do Rio, e traficantes do Comando Vermelho. O projétil faz parte do lote BNS23, comprado pela Marinha em 2007. Mas não havia operação da Marinha ali, e eles disseram que não houve extravio desse lote. Então, como isso foi parar lá?
A gente precisa dessa informação para saber quem matou quem, e com uma munição que deveria estar… onde? Foi roubada? Vendida? Extraviada? Desviada? Contrabandeada?
No fim do ano passado, eu entrevistei o Levi Inimá, tenente-coronel reformado do Exército e autor do livro “Balística forense: do criminalista ao legista”. Ele me disse: “Quando a polícia mata, ela desfaz o local do confronto e finge prestar socorro”. Levi fez incontáveis perícias. O deputado paulista Leite quer facilitar o trabalho sujo deste tipo de policial denunciado por ele?
Nós não podemos abrir mão desse tipo de informação em um país onde cerca de 43 mil pessoas são mortas por armas de fogo anualmente e onde o índice de elucidação de homicídios é baixíssimo.
De novo: a quem interessa não saber de onde vêm e para onde vão – ou deveriam ir – essas munições? Vocês podem perguntar ao deputado Alexandre Leite.
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