Para IAB, pacote de Moro aumenta a violência e prejudica os mais pobres
O Presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Marcio Barandier, fez parte de um grupo que se reuniu para estudar detidamente o pacote anticrime elaborado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro. Ao final, os advogados concluíram que 17 das medidas propostas por Moro devem ser rechaçadas por avançar sobre o Estado Democrático de Direitos, levando o país a virar um Estado policial. Em sua opinião, a população mais pobre será a mais atingida caso o pacote siga para votação da maneira como foi apresentado pelo ex-juiz.
Barandier fundamenta as suas críticas numa sólida carreira. É formado pela Universidade Candido Mendes (Ucam), pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). É membro da Comissão de Propriedade Industrial e Pirataria da OAB/RJ e do Conselho Consultivo da Sociedade dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro (Sacerj). Integrou, de 2004 a 2006, a Comissão Especial de Estudos sobre a Reforma do Judiciário, a Comissão de Ciências Penais e a Comissão de Estudos do Projeto de Reforma Processual da OAB/RJ e foi professor de Direito Processual Penal da Escola Superior da Advocacia da OAB/RJ. O Dr. Márcio Barandier conversou com o 247.
247 – Como presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados do Brasil, o senhor conduziu os trabalhos que rejeitaram 17 das 19 medidas propostas no pacote Anticrime, do ex-juiz, e atual ministro da Justiça, Sergio Moro. Que desdobramentos podem ter este trabalho, para a sociedade?
A expectativa é a de que o nosso trabalho, que contém análise profunda e científica das alterações legislativas pretendidas pelo pacote do Governo Federal, contribua para os debates no Congresso Nacional e, finalmente, para a rejeição desse pacote. Na visão do IAB, 17 das medidas propostas nos três projetos de lei devem ser integralmente rejeitadas e duas delas são admissíveis, desde que sofram ajustes.
247 – O senhor classificou esse resultado como “exame crítico e observância dos princípios que devem reger o estado democrático de direito”. Em que medida o pacote proposto por Moro, avança sobre o Estado Democrático de Direito, em sua visão? O estado de direito está ameaçado?
O pacote avança contra o Estado Democrático de Direito na medida em que está repleto de inconstitucionalidades e impropriedades técnicas que violam direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, fixadas em cláusulas pétreas, notadamente a presunção de inocência e o devido processo legal, além da dignidade da pessoa humana. Esse cenário, a meu ver, ameaça sim, o Estado de Direito de forma insidiosa, sem a grosseria dos sistemas assumidamente autoritários, porém com a implementação do Estado policial, do direito penal do terror. Isto atingirá a todos, porém com maior intensidade os mais pobres, e multiplicará o encarceramento em massa já existente nas condições que o próprio Supremo Tribunal Federal considerou um estado de coisas inconstitucional.
247 – O próximo passo anunciado pelo IAB é a entrega desse trabalho à Câmara dos Deputados. Já foi entregue? Que medidas espera do Congresso, com relação às críticas feitas?
Consolidamos o texto final para encaminhamento ao Congresso Nacional, o que será feito em breve. Esperamos que os parlamentares examinem as nossas ponderações, que são técnicas, científicas, e rejeitem essas mudanças desastrosas.
247 – Um dos temas polêmicos do projeto é a insistência de Sergio Moro, quanto à prisão antes do transitado e julgado, em segunda instância. Saltava aos olhos que o foco desta proposta era o de impedir a liberdade do ex-presidente Lula. Agora, com o STJ mantendo a sentença e ignorando o mérito do processo, este ponto perde importância? O senhor considera que isto muda alguma coisa?
Não posso afirmar que a insistência nesse ponto tenha relação com o caso do ex-presidente Lula, até porque o ministro Sergio Moro já defende essa posição há mais tempo. A questão é que se trata de afronta direta à Constituição Federal e de contrariedade à literalidade de dispositivos do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. Não há como devolver ao inocente a liberdade que dele foi suprimida, e por isso o nosso sistema legislativo expressamente só permite a prisão antes da condenação definitiva em situações muito excepcionais de natureza processual. O julgamento definitivo do mérito do processo do ex-presidente, na minha opinião, não altera em nada a importância do tema, não muda a falsa controvérsia que se criou para um assunto jurídica e legalmente simples e óbvio.
247 – A ditadura fez uso dos “autos de resistência”, para forjar “troca de tiros” que justificassem as mortes dos que resistiam ao arbítrio. A proposta do ex-juiz mantém esse princípio. O que acha disto e que outros itens do projeto fazem contato com o período ditatorial?
A justificação da violência policial no Brasil é histórica. Quando o projeto propõe a ampliação das hipóteses de legítima defesa para agentes públicos, estabelecendo uma presunção genérica de licitude das ações policiais violentas, busca legitimar legalmente os conhecidos excessos, em especial as execuções, como acontecia com os autos de resistência. É um estímulo para a polícia matar sem necessidade. Além disso, o projeto investe basicamente na supressão de direitos de defesa, o que é muito característico dos regimes autoritários. Isto se verifica, por exemplo, na limitação dos embargos infringentes, na inversão do ônus da prova e falta de critérios claros para o confisco de bens em qualquer espécie de crime, na admissão de fundamentos abstratos para prisão preventiva, na imposição de obstáculos para o contato entre advogado e cliente preso, inclusive com possibilidade de gravação da conversa entre eles! Enfim, é preciso perceber que o autoritarismo pode ter várias facetas, muitas vezes, como nos tempos atuais, com aparência de legalidade.
247 – O projeto também prevê que os juízes poderão reduzir pela metade, e até mesmo deixar de aplicar uma condenação a alguém que matar em legítima defesa se o “excesso doloso” for causado por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Durante o anúncio do pacote Moro justificou a medida, dizendo que na prática isto já vem sendo feito. O senhor concorda?
O nosso parecer faz uma ressalva: essa redução pode até existir para pessoas comuns, mas nunca para beneficiar agentes de segurança pública. Não tem sentido falar em medo, surpresa e violenta emoção na atuação profissional de um policial treinado. A prevalecer a proposta nesses termos, será enorme o estímulo à violência e à impunidade das execuções policiais. Se não me engano, o ministro usou como exemplo um caso envolvendo pessoa comum, e não agente público. É muito diferente. Claro que os policiais também são vítimas da violência, e têm a nossa solidariedade, mas não podem agir ou reagir como justiceiros, fora da legalidade, igualando-se aos criminosos.
247 – Temos, hoje, a terceira maior população carcerária do mundo. Ficamos atrás apenas dos EUA e da China. Em que medida o pacote do Moro afeta essa situação? Traz melhorias que possam reduzir o número de perto de 700 mil detentos?
Pelo contrário. O “pacote”, se aprovado como concebido, aumentará muito a população carcerária. Acabaremos logo em primeiro lugar no mundo. E é preciso alertar à população de que isso, nas condições das nossas prisões, reforçará as facções criminosas, que surgiram nos estabelecimentos prisionais e dominam a maior parte deles. A tendência é a de que o resultado seja exatamente o oposto do que o projeto anuncia, ou seja, o agravamento da violência e o aumento de poder das facções criminosas. Foi o que ocorreu com a Lei de Crimes Hediondos, produto da mesma ideologia. E mais: não se fez nenhum estudo de impacto econômico/financeiro dessas medidas. Afinal, já temos um déficit imenso de vagas para a atual população carcerária.
247 – Outro ponto polêmico é o que propõe a redução das videoconferências. Na ditadura foram importantes os depoimentos em que os presos na frente do juiz aproveitavam para denunciar e exibir as marcas da tortura. Sabemos que elas continuam sendo praticadas para arrancar confissões. Esta mudança não pode intimidar os presos a denunciarem os maus tratos?
Sem dúvida. Somos contra. O projeto visa a tornar regra uma excepcionalidade já prevista na lei. É inconstitucional, viola tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que preveem o direito do réu ser conduzido à presença física do juiz. Claro que isso intimidará ainda mais os presos a denunciarem abusos e dificultará o exercício da defesa, do contato com o defensor. Os mais atingidos serão, de novo, os réus pobres.
247 – Que outros aspectos da proposta de Sergio Moro flertam com os arbítrios semelhantes aos cometidos na ditadura?
Não se trata, a meu ver, de ditadura, mas de adoção de um direito penal extremamente autoritário, que produzirá ainda mais injustiças. Além do mais, não afetará positivamente em nada a prevenção de delitos e a violência urbana ou rural. Essa é uma fórmula desgastada, historicamente sem resultado prático. É o conhecido populismo penal que os políticos usam para impressionar a população ao invés de cuidar efetivamente das causas da criminalidade. Basta lembrar a Lei de Crimes Hediondos, também anunciada em 1990 como a grande solução para a criminalidade violenta, com medidas semelhantes, e olha onde estamos agora.
247 – Quais as chances de o Congresso conseguir barrar as medidas mais duras?
Não sei. Tenho esperança no discernimento dos parlamentares. É incrível que um projeto que busca alterar 14 leis não tenha sido precedido de nenhum estudo de uma comissão de juristas, como é normal não só no Brasil, mas na maioria dos países desenvolvidos. Então, o Congresso precisa fazer isso. Ouvir os especialistas.
Por Brasil 247