Morre sambista Beth Carvalho no Rio de Janeiro; releia entrevistas ao Brasil de Fato
Morreu nesta terça-feira (30) a cantora e compositora Beth Carvalho. Conhecida como “Madrinha do Samba”, ela tinha 72 anos e estava internada no Hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, desde 8 de janeiro. Ainda não foi divulgada a causa da morte.
Beth já enfrentava problemas de saúde pelo menos desde 2009, quando teve que cancelar sua participação no show de réveillon, na Praia de Copacabana. Em 2012, ela foi submetida a uma cirurgia na coluna e, no ano seguinte, não conseguiu participar do desfile da escola de samba Acadêmicos do Tatuapé, que a homenageou no carnaval de São Paulo.
A morte causou comoção em todo o país. Músicos, políticos e integrantes de movimentos populares usaram as redes sociais para prestar condolências.
Pelo Twitter, João Pedro Stedile, integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), enalteceu o legado da sambista: “Em toda a sua vida, esteve ao lado dos interesses do povo e da Nação. Com sua arte, conseguiu universalizar o samba. Não nos esqueceremos jamais!”.
Gleisi Hoffmann, presidenta nacional do PT, deixou um recado emocionado: “Amiga e companheira querida, sua voz e sua luta ficam conosco. Seu exemplo de vida nos ajudará a guiar”. Engajada na campanha de libertação do ex-presidente Lula (PT), Beth Carvalho subiu ao palco no ano passado para cantar o samba “Lula Livre”.
O cantor e compositor Marcelo D2 reforçou a importância do legado da sambista: “Vai deixar saudade, mas sua obra fica”. A cantora Elza Soares resumiu: “O samba está de luto”.
Marina Silva (Rede), candidata à Presidência da República em 2014 e 2018, também lamentou o falecimento de Beth Carvalho: “A sambista embalou clássicos que o Brasil todo cantou”.
Beth Carvalho virou manchete de jornais em todo o país no dia de sua morte, mas também deu o que falar em vida. A sambista falou em duas oportunidades ao Brasil de Fato. Releia as entrevistas e ouça a canção “Ordem e Progresso”, um dos símbolos do MST, na voz de Beth Carvalho.
Entrevista concedida a Fania Rodrigues em 09 de Novembro de 2015.
Brasil de Fato: Quando você olha para a sua história, desde as rodas de samba na casa do Tom Jobim, passando pelos festivais, as inúmeras músicas gravadas, até os últimos sucessos, do que mais se orgulha?
Beth Carvalho: O prazer de estar vivendo tudo isso. De ter bebido da água da fonte de grandes compositores, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Marcos Vale, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tanta gente boa. Essa foi uma geração espetacular. Mas também bebi muito na fonte do samba tradicional do Nelson Sargento, Cartola, Nelson Cavaquinho, Martinho da Vila, João Nogueira…
Você completa, atualmente, 50 anos de carreira. O que preparou para comemorar?
Já estou comemorando. Fiz um show com meus grandes sucessos. Antes de escolher as músicas fizemos uma lista com 80 sucessos. Eram muitas, não dava para entrar todas, então selecionei 25 e são essas que canto no show dos 50 anos de carreira.
Aqui no Rio terá algum show popular nessas comemorações?
Provavelmente vamos fazer um show no Parque Madureira, porque a gravação do meu último DVD foi feita lá. Ainda não temos data. A gente vai comemorar esses 50 anos desde agora até o ano que vem, porque comecei tarde, em setembro. Então tenho direito a comemorar até o próximo setembro.
A música “Vou Festejar”, gravada por você, foi utilizada em uma manifestação da direita contra o governo Dilma. O que achou disso?
Fiquei indignada. É muita falta de informação utilizar uma música que significou tanto para a esquerda. “Vou Festejar” sempre foi empregada em momentos de protestos contra a direita. No entanto, a direita teve a cara de pau de utilizar essa música em uma manifestação deles. Fiz uma crítica severa a isso e espero que eles não usem mais.
Na entrada da sua casa há retratos do Che Guevara e Hugo Chávez. Você já chegou a se encontrar com alguns dos líderes políticos que admira?
Sim. Com Fidel Castro, Hugo Chávez, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, que foi meu vizinho em Maricá, com Nicolas Maduro [presidente da Venezuela], João Pedro Stédile.
Como foi o encontro com o Fidel Castro?
Foi maravilho. Fui para Cuba junto com alguns artistas de uma novela que estava passando na época (1994), para cantar em um programa de televisão. E tivemos um encontro com o Fidel, que a gente não esperava.
Do que você se lembra desse encontro?
Vou contar agora o momento mais importante da minha vida. Fidel perguntou quem tinha uma nota de 1 real. Eu tinha. Ele pegou a cédula e disse: “Essa nota não tem cheiro, não vale nada”. E contou uma história. “Quando o Che Guevara era ministro da Economia, o peso cubano não valia nada. Mas, daí ele assinou uma nota de peso cubano e com essa nota nós construímos um hospital”. Fidel então pegou a nota de um real e falou: “Agora assina Beth”. Assinei e ele disse: “Agora essa nota vale”.
Beth, você é comunista?
Me considero uma socialista. O comunista é algo que vai mais além. A gente ainda não conseguiu chegar lá.
E como você vê o conservadorismo e os radicalismos hoje?
Fico muito triste, muito apavorada e com muito medo dessa adoração ao militarismo que algumas pessoas cultivam. Estão fazendo a apoteose do golpe militar. Uma coisa de doido. Essas pessoas não tem noção do que foi a ditadura militar no Brasil.
Entrevista concedida a Mariana Desidério em 31 de Janeiro de 2014.
Brasil de Fato: Você teve um problema problema grave na coluna e ficou internada durante um tempo. Como está a sua saúde?
Beth Carvalho: Minha saúde está ótima. Já estou em casa tem um tempo, desde setembro. Às vezes, tenho um pouco de dor. Eles dizem que é normal, porque quando você opera a coluna dificilmente não tem alguns traumas nos nervos.
Seu último CD foi lançado em 2011. Tem algum projeto novo?
Tem! Vou gravar agora um DVD em março. Vai ser uma mistura de músicas novas, com músicas de sucesso e talvez alguma participação.
O Carnaval está chegando. Você vai desfilar?
Tive os problemas de saúde, na coluna, então é melhor não abusar. Vou ficar em casa ou vou lá no sambódromo, no camarote. Assim, se eu sentir qualquer dor ou incômodo, eu posso me retirar.
No ano passado você também não desfilou. Sente falta?
Sinto. Eu adoro. Acho desfile de escola a coisa mais linda do mundo. Eu sou Mangueira, mas adoro ver todas as escolas. O Carnaval é a festa do povo, mas não está sendo mais. Eu fico indignada com isso.
Por quê?
Com os preços e os valores que estão sendo cobrados, não tem mais condição do povo assistir os desfiles. Ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro tem uma alternativa muito boa: se criou uma série de blocos de rua.
Por que é importante tem um Carnaval de rua forte?
O Carnaval é uma festa popular, importante no Brasil inteiro, musical e poeticamente. As crianças podem brincar, senhores de idade podem participar. Todo mundo está na mesma festa. É muito alegre e muito agradável para todo mundo. Por isso, acho muito bom ter essa manifestação popular. Eu fiz parte do primeiro bloco que fez essa manifestação, o Bloco do Barbas, no Botafogo. Barbas é por causa do Nelsinho, filho do Nelson Rodrigues, que tinha um bar. Depois se resolveu fazer um bloco. Acabou sendo o primeiro bloco.
O Carnaval é uma festa machista?
É a mídia que mais utiliza a nudez das mulheres. E isso acaba ofuscando o que é mais importante no Carnaval, que são as culturas da comunidade, a porta-bandeira, mestre-sala… As madrinhas de bateria, por exemplo, estão deixando de ser pessoas da escola de samba. São cada vez mais pessoas de fora. Mas é claro que não tenho nada contra de gente de fora desfilar. Quando eu comecei, eu era uma menina nova, da zona sul, e praticamente de fora também. Comecei a desfilar no início da década de 1970.
Você era da zona sul, mas já com o povo…
Eu acho que sou a única que veio da zona sul e teve essa trajetória toda. Talvez a Nara Leão tenha uma história, não parecida com a minha, mas importante. Ela foi uma pessoa da zona sul que divulgou compositores com Zé Keti, Nelson Cavaquinho e Cartola. Ela foi a primeira a fazer a isso.
Você tem um disco em que grava só sambas de São Paulo. Qual a importância do samba paulista?
Todos os sambas, de todos os lugares, são importantes pra mim. No momento em que Minas Gerais produz samba, eu vou dar moral pra Minas. Os três lugares que mais fazem samba são Rio de Janeiro, em primeiro lugar, São Paulo e depois Minas. Resolvi fazer um álbum com sambas de São Paulo por duas razões, primeiro por ser um dos lugares que mais fazem samba, e segundo para tirar o trauma deles. Depois da frase que dizem que o Vinicius de Morais falou, de que São Paulo era o túmulo do samba, isso virou um trauma. Ele pode até ter dito de outro jeito. Foi uma frase infeliz.
Esse “trauma” continua, na sua opinião?
Eu diminuí muito isso. Depois que eu gravei esse disco, São Paulo virou um lugar de samba. Samba mesmo. É uma coisa a quantidade de bares que tocam samba, de locais no subúrbio que têm samba. Tem em São Mateus, por exemplo, na zona leste. A zona oeste de São Paulo também tem lugares imensos com samba. Estou falando porque conheço. Na zona sul foi criado o Samba da Vela [que ocorre em Santo Amaro]. É um movimento belíssimo de compositores com músicas inéditas.
O samba de São Paulo é diferente do feito no Rio?
É diferente. A explicação que eu tive, de pessoas mais entendidas, é que dizem que os negros de São Paulo eram mais da lavoura. O samba era mais tristonho, mais lento. É diferente do morro no Rio, que, queira ou não queira, dá uma malemolência. Você sobe o morro rebolando. Mas o Rio inspirou o samba por todo Brasil.
O que você acha de sediarmos a Copa?
É maravilhoso. Aqui é o país do futebol, sim. Eu coloco o samba de novo na história. É o melhor futebol do mundo? É! Sabe por quê? Por causa do samba. Os jogadores têm a malemolência e aquela ginga que nenhum jogador do mundo inteiro tem. Nem o Messi tem. Eles não têm esse jogo de cintura, que tem o Neymar, que têm os jogadores brasileiros. Essa ginga vem do samba.
E as críticas em relação aos gastos para a Copa?
Tem as críticas. Mas tem mentiras em relação a isso. Não é bem assim. A gente vai lucrar muito, para começo de conversa. Tem coisa que foi empréstimo e que vai ser pago depois. Já era pra ser sede da Copa há muito tempo. Tem gente que quer falar mal da Dilma e fica com essa conversa fiada. O brasileiro adora futebol, está feliz da vida. Não tem discussão. Se fizerem uma enquete, vão ver que o povo está a favor.
Você sempre esteve próxima da política. Por quê?
Sempre tive posições políticas próprias. Antes de ser cantora, eu sou cidadã. Eu tenho que participar da política do meu país. Eu voto, participo e tenho que dar minhas opiniões.
Como você avalia o governo Dilma?
Vejo com ótimos olhos. A Dilma é maravilhosa. É uma mulher que tem uma história política como poucos. Poucos presidentes tiveram uma história como a dela. O Lula tem uma trajetória forte, mas nem ele passou pelo que a Dilma passou em termos de tortura, por exemplo.
Ela participou de grupos de esquerda durante a ditadura.
E ela veio do grupo do Brizola, do PDT, que eu acho uma coisa importantíssima. O maior político desse país foi Leonel Brizola. Em segundo vem o Vargas, depois Lula e Dilma.
O samba também tem um elemento revolucionário?
Na minha visão e de outros compositores, tem. Por exemplo, quando teve o Plano Cruzado. O Almir Guineto e o Adalta Magalha fizeram o samba “Corda no Pescoço”, que eu gravei. “E o povo como está?/ Tá com a corda no pescoço / É o dito popular / Deixa a carne e rói o osso.” Essa música é um protesto. Mas de uma maneira jocosa, brincalhona. Às vezes o público não percebe totalmente.
Você sempre defendeu o socialismo, não?
Sim. Eu não sou alienada. Tem gente que pensa que é socialista, mas não é. Se vem com essa conversa de criticar demais a Copa e aquilo outro, eu já desconfio. Eu converso com o povo.
Mas por que defende o socialismo? Tem gente que diz que é ultrapassado.
Ultrapassado é quem diz isso. Na verdade, assusta demais a muita gente que acha que comunista come criancinha, coisa que eu escuto desde criança. O que é capitalismo? É muito para poucos e pouco para muitos. O socialismo é o contrário: é muito para muitos. Eu tinha um pai maravilhoso que me ensinou o caminho das pedras. Meu pai sempre foi socialista. A vida inteira ensinou a minha irmã e a mim o caminho certo.
Ele foi cassado pela ditadura?
Ele era conferente da alfândega e foi cassado. Quando veio a ditadura, começaram a dedurar as ideias do meu pai. Foi ameaçado de prisão e teve de se esconder. Aí nós bolamos o seguinte: colocamos ele na casa de um parente extremamente reacionário, aí ninguém iria procurar ele lá. É a tal história. Parente é fogo. Parente é parente.
O que seu pai fazia exatamente?
Ele era conferente da alfândega, alto funcionário do Ministério da Fazenda, ganhava bem. Não éramos ricos, mas vivíamos bem. As coisas ficaram difíceis em casa [depois da ameaça de prisão]. Mas só por um tempo. Meu pai, sempre muito engraçado, espirituoso e tranquilo com suas ideias.
Por Brasil de Fato