A morte de Marielle, o discurso de ódio e a desinformação
As mentiras (fake news) e o discurso de ódio têm extrapolado os ambientes digitais e midiáticos para gerar violência e morte. O assassinato de Marielle, as ameaças de morte contra o deputado Jean Wyllys, contra a filósofa Márcia Tiburi e contra a professora e pesquisadora Débora Diniz (que os levaram a sair do Brasil por medo) são exemplos disso. Precisamos compreender como esses conteúdos são produzidos, como circulam e que mecanismos podemos usar para enfrentá-los.
Por Renata Mieli*
A vereadora do PSOL tinha uma ação política intensa e representava tudo o que, nos últimos anos, vinha sendo alvo dos ataques de uma direita reacionária e de viés fascista, dos fundamentalistas religiosos e grupos de interesse ligados ao crime organizado e às milícias que tomam conta do Rio de Janeiro.
Marielle encarnava o que precisava ser exterminado, varrido da sociedade. E sua morte precisava ser física e simbólica.
Então, depois de eliminada fisicamente, começou a tentativa de matar suas ideias. Imediatamente após a divulgação do seu assassinato, começaram a circular conteúdos na internet tentando culpar Marielle pela sua morte. A estratégia era ligá-la ao crime organizado, ou adotar o discurso de que ela foi morta porque era uma defensora de bandidos.
As mentiras e desinformação que circularam não foram episódicas e muito menos desconectadas, passaram pelas redes das organizações da direita como o MBL, e foram também plantadas por pessoas que ocupam espaço de autoridade na sociedade, como no caso do deputado federal pelo DEM, Alberto Fraga, e a desembargadora carioca Marília Castro Neves do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Portanto, Marielle foi vítima de dois assassinatos consecutivos: o que tirou a sua vida, e o que tentou tirar a sua dignidade e desconstruir sua luta.
Ambos, tiveram no ódio um dos seus elementos propulsores. O discurso de ódio (que ataca de forma deliberada setores da sociedade, aprofundando preconceitos e induzindo a intolerância a partir da inferiorização e da criminalização de grupos específicos — mulheres, negros, índios, comunidade LGBT, por religião, ideologia, nacionalidade) tem sido apontado como um dos recursos para plasmar crenças e criar posições a fim de atingir objetivos políticos na sociedade.
O ódio aos negros, às mulheres, à liberdade sexual, aos direitos humanos. O ódio às comunidades carentes, às favelas, à cultura popular. O ódio da diversidade. O ódio à esquerda e à luta por uma sociedade mais justa.
O papel da mídia na reprodução do ódio
Esse ódio, vale dizer, não é um impulso do momento, não é uma perda da razão, um desatino. Não, o ódio é mais do que um arroubo, é uma construção social, é um sentimento alimentado por valores culturais, pela disputa de poder político e econômico e é plasmado pelo discurso dos mass media na sociedade.
O ódio que tirou a vida de Marielle foi cuidadosamente engendrado por séculos de racismo, pelo machismo que impregna todas as esferas da vida em sociedade, e que, nos últimos anos, ganhou fôlego diante da crise política.
A mídia hegemônica tem papel central neste processo, uma vez que por anos adotou um discurso de criminalização da política e dos movimentos sociais, voltado de forma seletiva para os setores de esquerda. Além disso, são décadas de representação da mulher na mídia voltada para reforçar o machismo dominante, de sub-representação dos negros, que aparecem sempre em posição de inferioridade. No geral, historicamente, os meios de comunicação alimentaram o preconceito e a discriminação.
O discurso de ódio e a liberdade de expressão
Vale dizer que o discurso do ódio não é amparado pela liberdade de expressão e, portanto, é crime. A liberdade de expressão é um direito reconhecido internacionalmente, em tratados e declarações de organismos multilaterais. Está fundamentado no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 70 anos em 10 de dezembro de 2018. Na Constituição brasileira, está expresso no artigo 5º e é referido em vários outros.
Como todos os demais direitos, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, ele precisa ser visto diante do contexto e em relação a outros direitos. Também é importante ressaltar que é um direito individual e coletivo, uma vez que são as pessoas os seus titulares. E, é fundamental dizer que como direito, ele não pode ser visto como salvaguarda para abrigar manifestações de ódio, de preconceito e discriminação, também não é amparo para crimes de injúria, calúnia e difamação.
Por isso, não é qualquer manifestação de opinião, qualquer crítica que pode ser feita sob o argumento de que é preciso garantir a liberdade de expressão, já que não se pode comparar críticas ao discurso de ódio.
O que houve com Marielle, antes e depois de seu assassinato, não foram críticas, foram discursos para causar dano, pior, construídos intencionalmente para causar dano.
Discurso de ódio, desinformação na internet
O discurso de ódio tem sido objeto de preocupação de pesquisadores e organizações de direitos humanos, e organismos multilaterais. Principalmente em razão da escala, velocidade e alcance que passaram a ter em razão da dinâmica das redes sociais. Voltamos, mais uma vez, à questão dos novos mecanismos de direcionamento de conteúdo a partir da coleta de dados pessoais.
A circulação de conteúdos direcionados por interações estruturadas a partir do tratamento de dados pela internet está interferindo nos processos de comunicação e de percepção da realidade e da formação da opinião. Já há dados quantitativos disponíveis que demonstram como o discurso de ódio se prolifera nas redes sociais. Um deles é o do projeto Comunica que Muda, que entre os meses de abril e junho de 2016, utilizou um software de monitoramento, chamado Torabit, para varrer as plataformas como Facebook, Twitter e Instagram buscando conteúdos relacionados ao racismo, posicionamento político e homofobia. O projeto analisou 542.781 menções, em torno de dez temas. O percentual de abordagens negativas ficou acima de 84%. A negatividade nos temas que tratam de racismo e política é de 97,6% e 97,4%, respectivamente, quase empatados. Ou seja, os comentários positivos, ou neutros, sobre esses dez temas nas redes são diariamente encobertos por uma torrente de comentários negativos.
O discurso de ódio está intrinsecamente ligado ao fenômeno da disseminação de desinformação na internet (fake news). Essa questão ganhou dimensão de problema internacional depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, e foi alvo de uma detalhada análise produzida pela Comissão Europeia ao Parlamento Europeu, que define a desinformação como aquele conteúdo, “criado, apresentado e divulgado para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente o público”. Na esmagadora maioria dos casos, tais conteúdos resvalam no discurso de ódio para aprofundar preconceitos e sensos comuns existentes em grupos determinados.
Esses conteúdos se propagam por compartilhamento e pela relevância que assumem a partir da quantidade de reações (likes), que vão nos direcionando para bolhas de afinidades, ou câmeras de eco, com o intuito de nos proporcionar “uma melhor experiência de navegação”.
Num ambiente de polarização política e intolerância, essas bolhas vão eliminando o diálogo e produzindo uma guerra de narrativas. Assim, importa menos às pessoas se o conteúdo que elas compartilham é de qualidade — produzido com responsabilidade, com base em fatos e com fonte verificável. O que vale nessa guerra informativa é se o conteúdo reforça meu ponto de vista, se aquele link, meme, gif, vídeo reitera meu viés de confirmação. Muitas vezes a pessoa está consciente de que aquele conteúdo pode ser mentira, ou pode ser na verdade um discurso de ódio, como no caso do post da desembargadora contra Marielle, mas se ele confirma minhas posições e contribui para que a minha opinião seja majoritária então é compartilhado.
Esses conteúdos são amplificado pelas bolhas originadas deste ambiente de personalização produzido pelas plataformas a partir do uso dos nossas dados pessoais e pela ação dos algoritmos que direcionam os conteúdos nas redes.
É urgente entender como se dá essa dinâmica e buscar mecanismos para enfrentar isso que vem se transformando numa patologia social, que está minando a democracia e a liberdade.
Não há saída fácil para esta questão e ainda pouco consenso sobre que medidas podem ser mais efetivas para impedir a circulação do discurso de ódio e da desinformação que não ameacem a própria liberdade de expressão.
Como monitorar tudo o que é produzido numa rede mundial de computadores e selecionar o que é discurso de ódio ou desinformação construída com o propósito de causar algum dano individual ou coletivo? Quem arbitrará sobre esses conteúdos? Como preparar o sistema de Justiça para ter mais agilidade e qualidade na análise desses temas? Qual a responsabilidade das plataformas privadas na disseminação destes conteúdos? Vamos caminhar para uma discussão de regulação de plataformas e governança de algoritmos? No campo legal, será preciso criar novos tipos penais ou aumentar as penas para os crimes cometidos no ambiente virtual? É possível desenvolver políticas preventivas, a partir de uma abordagem educacional, desde os primeiros anos da escola? Como desintoxicar o ambiente social e retomar um espaço de diálogo saudável entre pessoas que pensam de forma diferente?
São muitas perguntas, ouso dizer que há dezenas de outras mais que não estão listadas aqui, mas poucas respostas convergentes ou já mais lapidadas. Há muitas experiências em curso. Muitas nem bem começaram e já fracassaram.
Mas uma questão parece estar clara: é preciso agir. É preciso ter mais proatividade na denúncia desses conteúdos, é preciso conversar sobre o tema de forma ampla na sociedade, levantar o problema e chamar a todos para fazerem essas reflexões. Para impedir novos crimes, novas violências físicas e simbólicas, novas mortes.
Para garantir a democracia e a liberdade. Porque amedrontados perdemos nossa liberdade de expressão e deixamos de fazer a luta política para transformar a sociedade. O ódio quer nos calar e matar, mas não vamos permitir que isso aconteça.
Marielle Presente!
Calar Jamais!
*Renata Mieli é jornalista, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e colunista da Mídia NINJA.
Fonte: NINJA