Como uma inexpressiva extrema direita ganhou o governo da República?
Como a extrema-direita, minoritária, inexpressiva, no âmbito da direita, assume a hegemonia desse campo? Como conseguiu deslocar a direita neoliberal tradicional capitaneada pelo PSDB, assumir o comando do processo político e conquistar o governo da República?
Por Adalberto Monteiro*
Depois de contribuir para o desgaste das forças de squerda, Sergio Moro será ministro do governo de direita
A vitória de Bolsonaro em outubro de 2018 teve seu nascedouro em 30 de outubro de 2014. O PSDB então liderado por Aécio Neves não aceitou o resultado das urnas e formalmente solicitou uma auditoria ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a apuração dos votos. Desencadeava-se, assim, uma escalada reacionária que rapidamente evoluiu para o golpismo escancarado. Essa escalada golpista assentou-se num só objetivo: sob hipótese alguma haveria um quinto governo das forças de centro-esquerda. E para tal o governo da presidenta Dilma teria de ser inviabilizado.
E assim se deu. A par de o governo Dilma ter sido levado à deriva, se intensificou a ação partidarizada da Lava Jato contra a esquerda em geral, em especial ao PT. Partidos e políticos de centro-direita também foram atingidos pelo esquema de corrupção desbaratado na Petrobras. Tem início também a operação jurídico-policial com a finalidade política de excluir o ex-presidente Lula da sucessão presidencial de 2018. Em agosto de 2016, concretiza-se o golpe de Estado de tipo novo. A presidenta Dilma Rousseff é derrubada por um impeachment fraudulento. Tudo até aqui levava a crer que o plano do PSDB de encurtar o caminho para reassumir o governo da República transcorria às mil maravilhas. Contudo, a máquina de destroçar o sistema político-partidário brasileiro que já alvejara a esquerda e também partidos de centro-direita, em maio de 2017 parte para cima daqueles que haviam liderado o impeachment de Dilma. O presidente ilegítimo Michel Temer perde por completo autoridade política no episódio da delação do empresário Joesley Batista. Em junho de 2017, o mesmo acontece a Aécio Neves, presidente e presidenciável do PSDB. A narrativa de que o sistema político-partidário, da esquerda ao centro, até a direita, estava completamente podre adquire ares de verossimilhança. Nesse meio tempo, o governo Temer, em vez de retirar o país da crise como prometera, a agrava ainda mais. O desemprego bate recorde sobre recorde. A vida do povo piora ao extremo. Obviamente, o pão que falta à mesa, o emprego que é negado ao trabalhador, a violência que aterroriza a todos e ceifa, sobretudo, os pobres, aos olhos da maioria do povo só têm um responsável: “a política, os políticos, todos eles ladrões e corruptos”. Bolsonaro, contraditoriamente, embora deputado federal desde 1991, emerge como um não político, um líder, um “mito”, conforme a saudação de seus apoiadores, “para pôr abaixo o sistema político podre”, liderado pela esquerda, pelo PT.
Em 2 de novembro de 2014, pequenos grupos saíram às ruas de São Paulo, Porto Alegre e Manaus, pedindo “intervenção militar”. Todavia, um detalhe: Bolsonaro, nas eleições de 2014, foi eleito deputado federal, o mais votado do Rio de Janeiro, com 464 mil votos. E imediatamente se autoproclama candidato às eleições presidenciais de 2018. “De direita” e contra o PT. Num primeiro momento essa pré-candidatura é tida como algo execrável, mas sem importância. Menos de dois anos depois, em julho de 2016, já aparece em 4º lugar nas pesquisas de intenção de voto para a presidência da República, pelos números do Data Folha: Lula (22%), Marina (17%), Aécio Neves (14%), Bolsonaro (7%), Ciro, (5%). Em dezembro de 2017, também no Data Folha, Bolsonaro assume a segunda posição: Lula tem 34%, Bolsonaro 17%, Marina 9%, Alckmin, 6%. Seguirá em 2º lugar até a retirada da candidatura de Lula em 11 de setembro de 2018. Assume a dianteira a partir de então e vai mantê-la em linha ascendente até a vitória no segundo turno. A facada que sofreu em 6 de setembro de 2018 tem um forte impacto na disputa. A narrativa do “mito” se confirma. Bolsonaro, para milhões e milhões, pela fábula tida como verdade, teria sido vítima de um crime urdido ou pelos políticos corruptos ou pelo crime organizado. A isso se juntou o componente religioso que Bolsonaro soube manipular. Se escapou com vida, foi por intervenção divina. Teria sido salvo para cumprir uma missão.
A vitória de Bolsonaro foi pavimentada e construída pela Operação Lava Jato. Bolsonaro vai se robustecendo à medida que o Estado Democrático de Direito é sufocado pela Estado de exceção. A Lava Jato associada à grande mídia fomentou o antipetismo. Encarcerou e cassou os direitos políticos do líder das pesquisas, Lula. Seletivamente focou seu ataque contra a esquerda e o PT. Num momento seguinte, suas ações atingiram também partidos e lideranças da direita e do centro-direita. No primeiro turno, quando Alckmin ainda se dizia em luta para entrar no jogo, a Lava Jato atinge o PSDB com operações em São Paulo, Paraná e Goiás. Às vésperas do primeiro turno, disponibiliza a delação premiada de Palocci deliberadamente, para prejudicar a campanha de Haddad. A Lava Jato ao criar um cenário de terra arrasada no status quo político e partidário, Bolsonaro encontra um terreno fértil para crescer.
Outro fator determinante para a vitória de Bolsonaro foi a presença do economista e banqueiro Paulo Guedes na campanha, que elaborou e propagou amplamente uma agenda ultraliberal e neocolonial, propondo privatizações radicais e corte de direitos sociais e trabalhistas. Com isso, Bolsonaro ganhou amplo apoio das classes dominantes e do status quo estadunidense. Pesou também, para o apoio do bloco das classes dominantes, sua pregação de um governo forte, autoritário, disposto a usar a força e “os rigores da lei” para implementar o seu programa de governo. O capital, tanto local quanto estrangeiro, aquiesceu essa ideia de um governo de conteúdo ditatorial como suposta fórmula para o Brasil sair da crise, às custas dos direitos dos trabalhadores e do patrimônio nacional.
A campanha de Bolsonaro teve forte apoio entre os militares. Na esteira de sua eleição, foram eleitos 73 militares, quatro vezes mais que os 18 eleitos em 2014. Publicamente, generais da reserva constituíram uma comissão de apoio programático, de inteligência, em prol da candidatura Bolsonaro. O fato é que a campanha de Bolsonaro permeou e foi impulsionada pelo numeroso e influente contingente dos quartéis.
As bandeiras da campanha de Bolsonaro: combate à corrupção, tendo como centro extirpar o PT e a esquerda do governo, por serem “visceralmente corruptos”; Estado mínimo, agenda ultraliberal, para realizar agressivo programa de privatizações, pois as estatais seriam um antro de agentes de políticos corruptos (o discurso de privatização generalizada foi modulado no segundo turno); combate à criminalidade, ao crime organizado, entre outras medidas, armando a população; defesa da família contra a perversão moral disseminada por uma esquerda “depravada” capaz de inculcar nas crianças o homossexualismo nas escolas, tendo como prova a fake news do chamado “kit gay”; manipulação da religiosidade popular, sobretudo dos evangélicos, sintetizada no próprio slogan da campanha O Brasil acima de todos e Deus acima de Tudo. As fake news na escala de milhões cuidaram de espalhar mais do que uma esquerda que não tem fé, que desrespeita e ultraja os ícones e símbolos sagrados do cristianismo.
O símbolo da campanha de Bolsonaro incorporado por milhões foi o gesto com as mãos que desenha uma arma de fogo. De acordo com o Atlas da Violência de 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o número de 62.517 assassinatos cometidos no país em 2016 coloca o Brasil em um patamar 30 vezes maior do que o da Europa. Só na última década, 553 mil brasileiros perderam a vida por morte violenta. Ou seja, um total de 153 mortes por dia. Valendo-se disso, a campanha de Bolsonaro disseminou fartamente a ideia da violência como norma para combater a violência. Suas propostas exploraram a vulnerabilidade do povo diante do problema com propostas de soluções demagógicas e ineficientes, mas que surtiram efeito. Há que se reconhecer a elaboração insuficiente da centro-esquerda nesse tema que adquiriu prioridade da sociedade em geral e, sobretudo, dos setores mais pobres da classe trabalhadora, principais vítimas da violência.
O Programa de Bolsonaro, sobretudo depois episódio da facada em 6 de setembro, não foi mais explicitado. Bolsonaro recluso apenas dizia, seletivamente, o que julgava necessário pelas redes sociais ou por entrevistas encomendadas. Paulo Guedes e o general Mourão foram “censurados” e mergulharam num silêncio obsequioso por ordem do chefe. Deliberadamente, o trio – o combate à corrupção associado ao antipetismo, o culto da violência para acabar com a violência; a defesa da família e da religião contra a perversão moral; e o ateísmo da esquerda – foi a mensagem principal que encobriu temas fulcrais como desenvolvimento, soberania, democracia e direitos.
No próximo trecho, analisaremos erros e insuficiências da centro-esquerda que contribuíram à derrota do campo da Nação e da classe trabalhadora.
*Adalberto Monteiro é jornalista, poeta e Secretário de Comunicação do Comitê Central do PCdoB.
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