O desfile da Tuiuti, a história e aquilo que a Globo não conta
Todo mundo já sabe o escândalo do golpe pelas mãos, pés, plumas, samba e alegorias da Tuiuti.
Por Conceição Oliveira*, do blog Maria Frô
A escola com o samba-enredo de autoria de Moacyr Luz, Cláudio Russo, Anibal, Jurandir e Zezé fez a mais dura crítica social ao golpe e suas consequências. O carro alegórico “Neotumbeiro”, que a frente traz o vampirão Temer e banqueiros, moedas, engravatados do grande capital e, abaixo, os paneleiros, chamados de “manifestoches”, merecia muito close e um historiador decente para traduzir cada componente do carro que a Globo evitou o quanto pode mostrar os detalhes e comentar. Só esse carro que é complementado com as alas do “trabalho escravo no campo e na cidade”, com a ala do “trabalho informal precarizado”, com a ala dos “manifestoches” (coxinhas de camisa da CBF, patos da Fiesp) valeu todo o desfile.
Mas não acaba aí, a Tuiuti conseguiu unir passado e presente mostrando que os neotumbeiros de hoje são herdeiros dos traficantes de escravos do passado. Seu enredo com duplo refrão (outra coisa inédita no carnaval) une passado e presente e nos convida a reagir: que sejamos todos livres, que não sejamos escravos de nenhum senhor, que possamos enfrentar os neoescravagistas, os neocapitães do mato, hoje a serviço do capital financeiro, que nos assalta direitos. Que após 130 anos de abolição, nós possamos de fato extirpar a exploração do capital e trazer dignidade aos trabalhadores, os verdadeiros produtores da riqueza.
Mas não é exclusivamente sobre o desfile da Tuiuti que gostaria de falar. Queria chamar atenção de alguns comentários globais durante o desfile da Tuiuti. Meu Deus, meu Deus, não me leve a mal, mas não aguento mais comentário sobre desfile de carnaval de global.
Comentaristas globais, please, estudem história básica, primária, antes de falar as atrocidades conceituais nos comentários de desfile de escola de samba.
A ala “corveia egípcia” da Tuiuti mostra que na sociedade do Antigo Egito a sociedade não se estabeleceu sobre o modo de produção escravista como a Roma e Grécia Antigas, já que a escola fala das relações de trabalho ao longo do tempo e optou por um recorte cronológico como é comum nos sambas-enredos. A ideia de todo o samba-enredo, lembrando sempre que o foco da Tuiuti é a classe trabalhadora ao longo do tempo, é a centralidade do trabalho humano, a denúncia da exploração dos trabalhadores através do tempo.
A corveia quer dizer pagamento de tributo com trabalho. É um termo mais comum para tratar da servidão do medievo, modo de produção na idade média ocidental, com a maioria dos trabalhadores na condição servil (preso à terra, mas sem poder ser comercializado como na escravidão moderna). No entanto, no Egito faraônico, o Estado era detentor das formas de produção e recolhia os excedentes da produção de todos (comunidades rurais e urbanas) e em épocas de crise (não raras, já que a dependência das cheias do Nilo era total) o Estado redistribuía a produção. Portanto, apesar de a corveia ser um trabalho compulsório para o Estado havia remuneração. Em condição escrava havia menos de 5% da população no Egito! Então, Fátima Bernardes, pelo amor! No Egito antigo não tem “escravos-mercadoria”! Tráfico de escravos é uma experiência moderna, do Capitalismo!
Outra pérola dos comentaristas globais durante o desfile da Tuiuti: um adereço de efeito da escola para seu desfile na avenida na ala “Escravo árabe” transformou-se em motivo de escravização. Transcrevo a pérola:
“Eram escravos basicamente para abanar, no clima quente, senhores, por isso esses leques altíssimos nas mãos”
Ou seja, de 650 a pelo menos 1800, alguns historiadores chegam a cifra de 10 milhões de pessoas que foram escravizadas pelos negreiros muçulmanos árabes nas rotas transaharianas apenas para ~abanar o mundo islâmico~. O mundo árabe não capturou e escravizou milhões de africanos para trabalhar no comércio, nas caravanas do Saara, para construir templos, muralhas, universidades, para servir no comércio do sal, cobre, óleo de palma e outras especiarias, contas de vidro e pedra, conchas, perfumes, ouro…. Para fazer a conversão ao Islã… Foi para servir de ventilador! Aff! Vão estudar história, bando de ignorantes que prestam desserviço público à educação do povo brasileiro.
Na ala das baianas, a principal referencia, que são as religiões de matrizes africanas com os enormes búzios das adivinhações pendurados na parte frontal da fantasia das baianas sequer foram mencionados. Os comentários foram generalistas. O jogo de búzios é uma das artes divinatórias utilizado nas religiões tradicionais da Diáspora africana em muitos países das Américas. Substituindo a Noz de Cola, o obi dos Ioruba, os búzios são comuns até hoje nos terreiros. Assim a ala das baianas da Tuiuti trata especialmente do que herdamos enquanto cultura dos povos africanos seus imensos saberes. Mas isso passou ao largo da Globo.
A ala guerreiros não se refere aos negros incorporados pelos europeus para o tráfico como sugere o comentarista, não faria sentido paramentados como guerreiros africanos, podem se referir à resistência africana dentro do continente como também nos quilombos americanos.
A ala do cativeiro também nos lembra que todo camburão tem um pouco de navio negreiro, o que passou ao largo dos comentaristas que preferiram destacar a participação dos pumbeiros, africanos que no continente africano trazia cativos de guerra para o litoral para alimentar o comércio de escravos com os europeus. Em nenhum momento, nenhum dos comentaristas globais associaram a guerra como um mecanismo de alimentação do tráfico moderno. Ao estimular as guerras no continente africano, os traficantes europeus ampliavam o provimento de sua mercadoria: os escravos. Mas o comentário pérola foi o da repórter ao destacar um membro da escola branco no meio das jaulas, dizendo que “brancos também eram escravizados”. Ela não sabe que as escolas aceitam brancos para os desfiles?
Ao menos no carro alegórico tumbeiros o comentarista foi capaz de dizer o óbvio: navios negreiros eram conhecidos também como tumbeiros porque as péssimas condições da travessia provocavam a morte de muitos cativos. Mas ele também poderia acrescentar que a morte, para muitas culturas, vivia além mar e era representada como branca.
Aos 32 minutos, Fátima Bernardes ao menos mostra para um dos comentaristas que existe a Lei No. 10.639/03 – a primeira lei promulgada pelo presidente Lula que obriga nos currículos escolares o ensino da história e culturas africanas. Ela não informa que foi Lula a promulgar, mas sua crítica é pertinente: se de 2003 em diante a própria Globo, que tem alcance nacional, trabalhasse em seu jornalismo e programas de entretenimento menos estereótipos e mais informações, até mesmo o nível dos comentaristas globais sobre conceitos históricos teria se elevado.
A Tuiuti prossegue com o trabalho dos escravizados em todos os ciclos econômicos da América Portuguesa: a cana de açúcar, a exploração dos metais preciosos, o ciclo do café, todos eles dependentes da mão-de-obra cativa. Pausa para ensinar ao comentarista que não se usava peneira na mineração, o processo era por sedimentação: os cativos colocavam os sedimentos das lavras do rio na bateia misturados com água, agitavam-na por meio de movimentos circulares e a diferença de densidade entre os minérios metálicos e os restantes dos sedimentos permitia a separação e garantia o garimpo. São, portanto bateias, a referência do adereço na cabeça das passistas da Ala Escravos com ouro e diamantes. Aqui também se perdeu uma grande oportunidade para se aplicar a Lei 10.639/03: não apenas a força-de-trabalho foi explorada para a produção de riquezas no Brasil, mas os saberes dos cativos africanos – seja na lavoura da cana, nos cafezais ou nas minas de diamante. Sem o conhecimento dos inúmeros povos africanos que para cá foram trazidos como escravos o Brasil não existiria.
A rainha da bateria, Carolzinha, enfiou um cala a boca na repórter da Globo que insinuou que ela é rainha porque é filha do presidente da Tuiuti e, Carolzinha, literamente sambou na cara dazinimigas e mandou engolirem, com seu samba no pé, a meritocracia tão propalada pelos Huck da vida.
O carro ouro negro é uma síntese das contribuições de saberes, cultura e produção de tantos povos africanos que aqui chegaram, ele juntamente com o samba-enredo faz a síntese do tema central da escola: a centralidade do trabalho é a classe trabalhadora brasileira, majoritariamente negra, produtora de riquezas e que ainda não viu ecoar a liberdade que Preto Velho ensinou: fui mandinga, cambinda, haussá (algumas das diferentes culturas escravizadas que compõe a classe trabalhadora brasileira); Fui um rei egbá preso na corrente/Sofri nos braços de um capataz (a escravidão moderna submeteu diferentes grupos sociais ao horror do tráfico); Morri nos canaviais onde se planta gente (referência a um dos ciclos econômicos cuja riqueza foi produzida pela mão de obra cativa e que com sua exploração atroz também ceifava vidas); Ê calunga! Ê ê calunga!/Preto Velho me contou, Preto Velho me contou/Onde mora a senhora liberdade/Não tem ferro, nem feitor (uma das entidades mais populares nas religiões afro, representa a sabedoria) Amparo do rosário ao negro Benedito/Um grito feito pele de tambor/Deu no noticiário, com lágrimas escrito/Um rito, uma luta, um homem de cor (referência a diferentes formas de resistência negra, das irmandades negras, ao ritmo dos instrumentos de percussão que sem eles não teríamos carnaval ou música brasileira e também à imprensa negra, referência inclusive ao jornal fundado por Paula Brito, em 1833, que teve uma ala inteira e com pouquíssimas informações). Aliás, pesquisem, porque vale a pena. Provocações como essa poderiam ilustrar os comentários durante o desfile, mas foram raríssimas as vezes onde eles foram aproveitados. Um dos comentaristas, o pior deles, faz uma chacota besta e ignorante sobre a expressão “homem de cor”, ele certamente não leu Arthur Ramos…
Na Ala as Camélias do Leblon (nada a ver com Danuza), comentários com “ala plus size”… Meu Deus, meu Deus, não me leve a mal, mas dê historiografia carioca para essa turma da Globo ler, please! Símbolo dos abolicionistas, quando a ideia de abolição ainda não havia ganhado a sociedade, quase um código secreto e, sim, Isabel usava camélia na lapela. Negros durante toda a primeira metade do 20 colocavam camélias em homenagem a Isabel. Caetano cantou as Camélias do Leblon. A Camélia era uma flor subversiva, delicada como é a liberdade, cultivada pelos cativos fugidos e organizados no quilombo do Leblon. Globais, leiam Eduardo Silva e seu belo livro “As camélias do Leblon e a abolição da escravatura”.
Vou poupá-los da análise das alas da exploração atual que começa com o cativeiro social, vai para a exploração do trabalho escravo no campo e na cidade com a incrível sacada de denunciar o trabalho escravo no casal de porta-bandeira e mestre sala (ela como costureira e ele como magnata da confecção). Aqui, façamos justiça, Fátima Bernardes enxergou a exploração da indústria da moda e seu trabalho escravo e até infantil.
Um comentário breve depois da ala dos trabalhadores precarizados que a Globo vende como “empreendedores”, vem a dos Guerreiros da CLT, não por acaso além dos múltiplos braços para luta, eles são vermelho PT, vermelho CUT. A Globo passou tão rápido essa ala que mal dá para ver a foice e martelo comunistas numa das múltiplas mãos dos bravos guerreiros que carregam ferramentas, representando o trabalho formal, organizado e lutam contra a reforma trabalhista e da previdência e contra todos os assaltos aos nossos direitos empreendidos pelos golpistas que agiram e agem como coparticipes da Globo golpista.
A ala dos Manifestoches é a melhor. A Globo gaguejou porque viu sua mão manipuladora dos fantoches, patos da FIESP. Dava para deitar e rolar se não fosse a própria Globo a estimular as micaretas golpistas domingueiras dos coxinhas batedores de panela, vestidos com suas camisas amarelas das CBF, montados em seus patos com olhos de cifrão, manipulados como marionetes pelas mãos do grande capital representadas pelos punhos dos paletós. O máximo que os globais que conseguiram dizer foi o nome da ala e um comentário tímido: “manipulados, fantoches”. Desta vez, o comentarista de voz mole e debochada não fez a pergunta que fez sobre a expressão “homem de cor”: manipulados por quem, cara pálida?
O carro neotumbeiro, como já comentamos no início deste texto, é outra síntese do Brasil e mais uma vez a Globo gaguejou com Temer de vampiro sobre um imenso saco dourado de dinheiro, com o capital representando no topo com todos os componentes com alguma referência ao rentismo com barrigas gordas e o cifrão brilhando. Abaixo, uma mão acorrentada, representando os trabalhadores brasileiros, implora socorro e rasga a bandeira do Brasil no porão do neotumbeiro do golpe.
Entre a classe trabalhadora reescravizada no porão do neotumbeiro e a elite rentista nadando em dinheiro e pisoteando a todos está, manipulada pelas mãos do capital e da mídia venal global, a classe média batedora de panela. Na fila de trás dos manifestoches de camisa da CBF seguem os trabalhadores formais de diferentes profissões que exibem a carteira de trabalho sem o foco da mídia em sua luta por direitos da classe trabalhadora organizada. Um carro incrível e o comentarista bobalhão preferiu comentar o tamanho do quadril da passista, dar uma risada e falar do vampirão sem qualquer associação a Temer. E mais uma vez as câmeras passaram rápido pelo carro e não permitiram que analisássemos os detalhes.
Para terminar vamos, comentar a beleza dessa estrofe que é pura consciência de classe e claro a Globo fingiu não ouvir, mas a gente destaca:
Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz
Quer mais luz que isso em uma abertura de samba? Classe trabalhadora preta ou branca, o capitalismo nos faz mercadoria, nos esfola, arranca nossos direitos, independente da cor ou da religião somos da classe trabalhadora, não sejamos manifestoches da classe média que não se reconhece como classe trabalhadora.
Ao redigir este texto, considerei bem difícil uma outra escola de Samba fazer o que fez a Tuiuti: debate político de primeira e com a centralidade da exploração do capital sobre o trabalho humano e todas as suas decorrências: desigualdade social, escravidão contemporânea, trabalho precarizado, ataque aos direitos sociais e trabalhistas. E parece que não me equivoquei. Ao ver o desfile da Beija-flor ontem parecia que a Página Quebrando o Tabu tinha descido para a Sapucaí: fez que debatia política, mas escorregadia fugiu do cerne da questão.
O samba maravilhoso da Beija-flor merecia uma realização melhor na avenida. Teve boas sacadas, mas não decolava. Achei interessante, por exemplo, o carro do Frankstein construído com todos elementos do preconceito, intolerância, mas colocar no mesmo patamar racismo e rancor diminui o impacto, porque racismo é institucional, social, rancor é sentimento individual. O mesmo da trindade da Pietá, acenderam uma vela pra crítica outra pra conformação. No fundo o recado final é que depende de nós a solução, a mudança deste estado caótico, não do nós da luta coletiva, da consciência política, da ação revolucionária, mas de cada um mudar seu coração, assim não terá mais Realengo, mulher de Cabral e gente criticando Pablo Vittar e JoJo Todynho como se violência social, corrupção, preconceitos, o vizinho falador e discriminação institucional que provoca por exemplo o genocídio da juventude negra, estivessem no mesmo patamar e fossem resolvidas no varejo.
Cadê a mão do Capital engolindo tudo e a todos?
Repito, o samba é lindo e poderoso e a gente fica esperando que a Beija Flor junte a galera da ala dos mendigos, do carro dos esfarrapados e destrocem a grande ratazana do capital corruptor. Mas daí vem a solução Nutella pra crise: simpatia paz e amor. E tudo termina na quarta-feira, de volta aos morros e periferias esquecidos pelos Crivellas, Dorias, Pezões, Temers e ShellTF.
Que confusão na avenida querer repetir 1989 no contexto de 2018. Acabou num Desfile Nutella. Tornou ainda mais incrível a leitura poderosa que a Tuiuti fez do buraco que o golpe jogou o Brasil.
Assista abaixo a íntegra do desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti:
*Conceição Oliveira é historiadora, autora de coleções didáticas entre elas África tantas Áfricas, em co-autoria com Luiz Carlos Azenha.
Fonte: Blog da Maria Frô
Portal Vermelho