O julgamento de Lula: Poder Judiciário e política democrática
Não há a menor novidade quando se afirma que o Poder Judiciário faz política. A exigência muito comum de que juízes são apenas técnicos que exercem ofício de aplicação das leis não tem correspondido à experiência do concreto; e como não temos desafios no abstrato, a historicidade material de como o Poder Judiciário, seus tribunais e juízes compartam-se é o que interessa.
Por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima *
Num dos melhores diagnósticos sobre a experiência do nazismo Franz Neumann não deixa dúvidas: “No centro da contrarrevolução, estava o judiciário (…) A lei é talvez a mais perniciosa de todas as armas nas lutas políticas, precisamente por causa do halo que envolve os conceitos de direito e justiça. (…) Em qualquer sistema de direito encontram-se múltiplas possibilidades técnicas de perversão do direito com finalidades políticas”(1).
Transcorrida a Segunda Guerra Mundial, e a redemocratização da Europa após 1945, o fim das ditaduras da Europa Ibérica dos anos 70, e finalmente, nos anos 80, a queda das ditaduras da América Latina, o diagnóstico continua semelhante, agora com Ran Hirschl: “O Poder Judiciário não cai do céu; é politicamente construído. Acredito que a constitucionalização dos direitos e consolidação da judicial review resultam de um pacto estratégico liderado por elites hegemônicas e crescentes que se sentem ameaçadas, e buscam isolar suas preferências políticas contra a mudança da fortuna da política democrática, em associação entre elites econômicas e judiciais as quais têm compatibilidade interesses”(2) .
Há montanhas de bons textos sobre as fragilidades da sentença de Moro contra Lula que é objeto de recurso perante o TRF da 4ª Região. Mesmo antes do julgamento de primeira instância, também já havia bons textos sobre a condução processual. O papel da defesa de Lula foi o de chamar a atenção destas fragilidades ainda naquele momento, o que desencadeou a reflexão de professores de ciência política, direito, filosofia, sociologia. O texto da longa decisão de Moro encarregou-se deste registro: impressiona o volume de críticas à defesa de Lula, para tentar cobrir a parcialidade do juízo de primeiro grau.
Desde a condução coercitiva de Lula e a divulgação de conversas telefônicas com a então Presidenta Dilma e de teor particular da família do ex-Presidente, já se sabia que Moro exararia uma sentença condenatória.
O que me parece merecedor de especial olhar é a análise das razões da história que nos trouxe até aqui. Por quais motivos nossa sociedade – dotada de uma constituição dirigente, de política democrática, e do mais longevo período interrupto de democracia formal – teve tanto regresso, exatamente neste ambiente institucional que lhe favorecia? A burocracia judiciária – juízes, integrantes do Ministério Público e Polícia Federal – tomou conta de nossa agenda política em tamanha proporção que até ministros do STF deixam-se contaminar: ou fazem abertamente papel de políticos partidários, dão entrevistas a qualquer um que esteja com celular à mão em centros comerciais, visitam presídios como se não conhecessem a situação carcerária nacional, e ainda reivindicam para si e para seu Tribunal a tarefa de refundar o País. Como previu Saramago, “nunca caímos tão baixo” (3)?
A insistência em recepcionar na burocracia judiciária teses de que o Poder Judiciário também pode e deve efetivar a Constituição, produziu péssimos resultados, uma vez que cada juiz, cada integrante do Ministério Público entendeu que poderia ele mesmo efetivar a Constituição. Mais: entendeu que esta era sua tarefa. Não surpreende quando alguns, embriagados pelo próprio delírio autoritário, atiram pedras na política e nos políticos, e ainda decidem “conforme sua consciência”, como se não houvesse parlamento, parlamentares e o povo que os elegeu. Pensam que mudam o País com decisões judiciais.
Muitos elementos estão disputa no dia 24 de janeiro, no TRF da 4ª Região. Os três juízes decidirão, além o destino das eleições de 2018 no Brasil, decidirão também se as garantias constitucionais do devido processo legal, com ampla defesa e recursos a ela inerentes, prevalecem. Se confirmarem a sentença contra Lula, não somente violarão a Constituição e as leis: ratificarão o que o mesmo TRF da 4ª Região disse sobre a operação lava jato e seus métodos, reconhecendo que se vive um estado de exceção: “(…) a continuidade das investigações da Operação Lava-Jato, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional” (4).
A leitura que se fará do julgamento de Lula atingirá a Constituição e a política democrática brasileira. Não se está somente diante de uma encruzilhada que os setores regressistas prepararam contra a esquerda democrática brasileira: está-se diante da concreta possibilidade de destruição do constitucionalismo democrático, da pluralidade e do reconhecimento do povo enquanto ator político determinante.
Por fim, destaco que a história nada esconde. A burocracia judiciária, protagonista de primeira hora de nosso abismo atual e como é de costume, em cinquenta anos daqui estará a implorar por desculpas. Assim pediram os perpetradores do holocausto, das ditaduras, etc. Todos clamam pelo perdão e por um certo “direito ao esquecimento”, na expiação de seus graves pecados. Estamos sempre assistindo ao pedido de perdão e da conciliação. Os mortos estão sepultados (nem todos); os torturados já sofreram. Pede-se, candidamente, perdão e todos perdoam, na vã esperança de que nada mais daquilo se repita. Quem nos socorre nestas horas para a necessária lucidez é a literatura, com Shakespeare: nada encoraja tanto o pecador como o perdão.
*Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt. Professor Titular da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de Fortaleza.
Notas
1. Franz Neumann: Behemot – Struktur und Praxis des Nationalisozialismus 1933-1944. Fischer Verlag: Frankfurt/M., 1998, p. 44.
2. Ran Hirschl: Towards Juristocracy. The Origins and Consequences of the New Constitutio-nalism. Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 49.
3. José Saramago: As Intermitências da Morte. Cia. das Letras; São Paulo, 2005, p. 69.
4. P.A. CORTE ESPECIAL Nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS. RELATOR: Des. Federal RÔMULO PIZZOLATTI – Voto, p. 4
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