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Agrotóxicos como arma química: a permanente guerra agrária no Brasil

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Pixabay

O herbicida 2,4D é uma das substâncias utilizadas em um componente chamado de "agente laranja", usada na Guerra do VietnãO herbicida 2,4D é uma das substâncias utilizadas em um componente chamado de “agente laranja”, usada na Guerra do Vietnã

Assim, as constantes chacinas, mortes, torturas, trabalhos forçados e contaminação química são enquadramentos do cenário bélico agrário velado no Brasil. Contudo, o cerco tem se fechado ainda mais neste último período, visto na guerra que se traduz em mais de 65 mortes e 4 Massacres (Colniza, Vilhena, Pau d´Arco e Lençóis) por conflitos no campo em 2017 – segundo dados preliminares do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos – e ao menos 1.536 conflitos em 2016.

Porém, o belicismo no campo não se expressa somente nos embates e conflitos, mas na própria lógica da configuração da produção agrária. A Revolução Verde, como é o conhecido o processo de “modernização” agrícola experimentada nas décadas de 1940 e 1950 nos Estados Unidos – e exportada para os países latino-americanos nas décadas seguintes – tem relação embrionária com a tecnologia militarista. O período histórico não é acaso. Após as grandes guerras mundiais era preciso focalizar a tecnologia belicista desenvolvida para novas formas de acumulação e gestão de terras e territórios, em especial sobre os Estados-Nações dependentes ao imperialismo político-econômico dos países de capitalismo central.

Do plantio à colheita impuseram-se as estratégias de dominação de guerras. Gigantes maquinários agrícolas, como colheitadeiras e pulverizadores, que se basearam em tanques blindados. A adaptação de armas químicas que se disseminaram em pesticidas, herbicidas e fertilizantes. Armaduras que se tornaram equipamentos e roupas de “proteção”. Pequenos aviões-caça que hoje são pulverizadores aéreos. Até as cercas de arame farpado comuns no campo brasileiro são frutos das barricadas de guerra. Ou mesmo a esterilidade das sementes modificadas como tática de controle.

Ainda assim, a difusão dos agrotóxicos e o aproveitamento das moléculas químicas – um dos principais legados da tecnologia bélica – continua servindo de arma química contra as populações do campo e de contaminação à saúde de todo o povo brasileiro. Os agrotóxicos, apesar de criados já na década de 1920, se difundiram nas práticas agrícolas pós 1945, aprimorando as substâncias utilizadas nas grandes guerras. Só na primeira guerra mundial, mais de 20 agentes químicos foram despejados e testados em territórios e povos sitiados.

Usados na guerra

Os organofosforados aprimorados após a década de 1930 como armas químicas foram a fonte de desenvolvimento do herbicida glifosato, um dos principais ingredientes do herbicida roundup patenteado pela Monsanto em 1974, e importado em mais de 129 mil toneladas somente em 2015 pelo Brasil. Os mesmos pesticidas organofosforados podem sintetizar o Gás Sarin, desenvolvido em 1932 como arma utilizada nos campos de concentração nazistas e nas guerras do Iraque e na guerra Síria, nesta última com registro de atentados em abril de 2017.

O DDT, um dos pesticidas mais utilizados no mundo e proibido no Brasil só em 2009, foi criado para combater combate aos mosquitos vetores da malária e do tifo nas trincheiras da Segunda Guerra.

O herbicida 2,4D, amplamente difundido no país, é uma das bases para a mistura do “agente laranja”, substância altamente tóxica que serviu de base para o extermínio de vietnaminas pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (entre 1964-1975), quando mais 80 milhões de litros da substância foram despejados, gerando má-formações, câncer e doenças congênitas até hoje na população local.

Terra arrasada: ofensiva sobre os territórios tradicionais

Mas não é apenas no ciclo dependente agrícola brasileiro que estão os agrotóxicos. O seu uso também serve de tática de guerra contra os povos dos campos, águas e florestas brasileiros. O que se pretende é a “terra arrasada”, como um refinamento das práticas beligerantes de expulsão desses povos de suas terras e territórios. Essa tática, edificada principalmente pelos russos contra o exército napoleônico e depois nazista, consiste em devastar e esgotar todos os recursos possíveis para sobrevivência, como forma de minar territórios e vidas. O uso de produtos químicos é uma das estratégias usadas para reforçar esse tipo de tática, marcada pela exploração e devastação máxima da biodiversidade da região, como por meio do desmatamento, do soterramento de rios, esgotamento do solo, plantio de monoculturas, mudanças no relevo da região. Mais do que o desgaste da natureza da região, essa também é uma das formas de enfraquecer a memória e a cultura dos povos das regiões, com a destruição de locais sagrados e históricos, como casas, cemitérios e igrejas.

A tática da “terra arrasada” tem sido constantemente aplicada nos territórios de povos e comunidades tradicionais brasileiros, especialmente de comunidades quilombolas.

Os territórios tradicionais constantemente são palco de disputas, na maioria das vezes envolvendo interesses privados voltados ao domínio, apropriação e transformação em mercadoria da terra e de toda riqueza natural que há sobre ela. Tal poder hegemônico exercido pelo capital muitas vezes ocorre por via direta, mediante violência e expropriação da terra de seus donos originários, os povos tradicionais, ou de forma subliminar, sem retirar os povos da terra, mas arrasando sorrateiramente os recursos naturais existentes nela.

É exatamente deste modo que ocorre no caso dos agrotóxicos. O seu uso e acesso é incentivado e facilitado pelas multinacionais produtoras de insumos agropecuários e até mesmo pelo Estado e seus órgãos, com o objetivo direto ou indireto de arrasar as terras tradicionais e torná-las passíveis de apropriação enquanto mercadoria, a qual é destinada aos serviços do agronegócio.

Refinamento envenenado do conflito em um caso paranaense

Existem vários exemplos concretos desta lógica nefasta. Um deles pode ser encontrado em uma comunidade quilombola no Centro-Sul do Paraná, reconhecida como remanescente das comunidades de quilombo pela Fundação Palmares em 2004. As terras estão em fase de negociação final entre o INCRA e a empresa que hoje tem posse da maior parte da área, aguardando-se apenas a liberação de hipotecas dos imóveis para regularização da retomada do território pelos quilombolas, que já chegou a abrigar cerca de 300 famílias, as quais foram expulsas nos conflitos agrários.

A comunidade tem se visto cercada a partir da morosidade da regularização de suas terras e a partir do arrasamento de todas as áreas que a circundam, por meio do uso massivo e irregular de agrotóxicos, inclusive nas porções que serão destinadas à comunidade após a desapropriação.

Os moradores relatam o descarte inadequado de embalagens e resíduos de agrotóxicos, inclusive em nascentes e rios, dentre outras formas irregulares de uso. O descarte irregular de embalagens de agrotóxico contendo o princípio 2,4D foi constatado e registrado.

Em virtude desta situação, essa comunidade quilombola, assim como muitas outras comunidades tradicionais brasileiras, têm sofrido vários impactos decorrente da contaminação por agrotóxicos: os quilombolas estão privados de utilizar a água dos rios e nascentes que sempre lhes abasteceram, suas hortas e plantações têm sido destruídas e seus alimentos contaminados, e toda a comunidade têm apresentado problemas de saúde, como náuseas, alergias respiratórias e de pele.

Além disso, a biodiversidade do território tradicional está sendo destruída em decorrência da mortandade da flora e fauna locais, assim como uma nascente de grande importância cultural e religiosa para a Comunidade, uma vez que segundo a tradição foi abençoada pelo Monge João Maria, personagem de grande importância na Guerra do Contestado e que percorreu a região no início do século XX.

Como é possível perceber, são flagrantes às violações aos direitos humanos e fundamentais da comunidade, em especial ao direito à saúde, à alimentação adequada, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e aos direitos culturais.

Órgãos estatais que têm o dever de fiscalizar ações irregulares envolvendo contaminação por agrotóxicos foram noticiados sobre o caso e já têm tomado providências (mais ou menos enérgicas a depender do empenho político)

Avanço rumo à agroecologia

O incentivo ao pacote tecnológico e o uso de agrotóxicos também impacta a comunidade. O financiamento ao pacote de venenos e sementes modificadas, a falta de assessoria técnica agrícola e ambiental e a dificuldade de produção na terra sitiada pelo agronegócio também gera entraves para o avanço da produção agroecológica dentro da própria comunidade, a qual não é isenta das contradições sociais que permeiam todo o campo brasileiro.

A dificuldade em avançar também se expressa nos cortes orçamentários federais – que já eram baixos – para os próximos anos. O Projeto da Lei Orçamentária Anual para 2018 prevê o corte total dos recursos de apoio ao desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais.

Mesmo assim, têm se edificado iniciativas de fortalecer, de forma autogestionada, a produção orgânica no território, inclusive com projeto de construção de uma agroindústria comunitária.

Isto é, para a real existência dos povos e comunidades quilombolas em seus territórios há necessariamente que entrelaçar a questão da estrutura fundiária brasileira, do histórico racista de sua distribuição, da pressão e estratégias de expropriação constante pelo agronegócio, pelo livre uso da sociobiodiversidade e pela (re)construção de modos sustentáveis e ecológicos de produção e reprodução da vida. Fatores que necessariamente implicam redefinição do papel estatal brasileiro, que além do reposicionamento da estrutura produtiva agroexportadora perpassam pela adoção de fiscalização, implementação de políticas públicas e titulação e demarcação de territórios dos povos que são os verdadeiros guardiões da biodiversidade do país.

*Advogada popular e estagiária de Direito da organização de Direitos Humanos ,Terra de Direitos.

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