‘Vivemos golpe dado pelas mesmas entidades que se valeram de 1964’
Em debate sobre empresas que colaboraram com torturas promovidas pela ditadura civil-militar (1964-1985), juristas afirmam que falta de punição fez com que o poder financeiro voltasse a “deixar sociedade de joelhos”.
“Estamos envolvidos na perspectiva do medo, na cultura de não reparação de danos, de não enfrentamento de problemas do passado”, disse o juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Luiz Souto Maior durante o debate “Os Patrões da Ditadura: Perspectivas para a reparação”. No encontro, pesquisadores e membros do Judiciário discutiram quais os caminhos para responsabilizar empresas que colaboraram com a ditadura (1964-1985).
Para Souto Maior, é necessário radicalidade no enfrentamento do tema. “Não podemos ser conciliadores (…) Somos medrosos, temos medo de falar. Temos medo de falar até sobre nossa realidade atual. Vivenciamos um golpe de fato e as pessoas têm medo de falar sobre isso. A verdade é essa: nua e crua. Vivemos um golpe dado pelas mesmas entidades que se valeram do golpe de 1964 e agora querem se valer de novo porque não foram punidas. Elas têm novamente a possibilidade de mandar no povo brasileiro”, disse.
O jurista afirmou, no evento realizado na segunda-feira (13), que as empresas que colaboraram com a ditadura compõem a mesma força que derrubou a presidenta Dilma Rousseff (PT) no ano passado, e que comandam as diretrizes do governo de Michel Temer (PMDB). “Estão fazendo novamente a mesma coisa de uma forma explícita. Veja a reforma trabalhista que não é outra coisa senão colocar os trabalhadores de joelhos. Colocar os sindicatos de joelhos, colocar a sociedade de joelhos perante o poder que eles detêm sem nenhum limite.”
“Estão destruindo o próprio Estado, as instituições. O que resta é o poder absoluto dos grandes conglomerados econômicos. Esses mesmos que se valeram do golpe de 1964 e estão aí hoje mandando e desmandando”, disse. O problema, como afirma Souto Maior, é “sermos engolidos novamente pelo medo e pelo poder econômico, que não teme nada. Eles não têm medo de assediar juízes. Ninguém está livre deles”, completou.
Souto Maior ressaltou a importância dos trabalhos de resgate à memória da ditadura, como o de responsabilizar as empresas envolvidas. Entretanto, o jurista classificou a atividade como “sofrida”. “É isolada. A sociedade não compreende, é capaz de nos reprimir. ‘O que essas pessoas querem fazer? Vão atacar empresas? E os empregos?’ Eles fazem ameaças como agora, na reforma trabalhista: ‘Pergunta para o desempregado se não é melhor qualquer emprego do que um de fato’. Eles dizem, na verdade, que não interessa o que queremos, só interessa o que o poder econômico pode.”
“É uma coisa muito séria. Quem comete o crime ainda nos transforma em criminosos, em rebeldes, em pessoas que não se ajustam. Coisa alguma! Eu não tenho medo desse poder. Não podemos ter medo. Precisamos nos unir efetivamente para superarmos esses medos. Estaremos juntos para romper essas barreiras”, finalizou.
Entre as empresas apontadas como coniventes com os crimes da ditadura está a Volkswagen. “Escolhemos a Volkswagen no ABC porque sobram documentos. Teve repressão constante desde 1969, com muitos documentos que comprovam. Constituímos um grupo para discutir com trabalhadores da empresa que, por sua vez, quer fazer um evento junto do sindicato para lançar um livro sobre o assunto”, disse o coordenador do IIEP, Sebastião Neto, sobre negociações com a empresa, que mostra disposição em colaborar.
“Um dos casos mais graves na Volks é de um trabalhador de um cargo importante. Um grande quadro. Ele foi preso. Foram 11 prisões na Volks, todas efetuadas dentro da fábrica. A polícia entrava e pegava o cara trabalhando e a Volks não informava nem as famílias. Esse rapaz ficou quatro meses sendo torturado, porque a empresa não admitia um trabalhador sendo membro do Partido Comunista”, completou Neto.
Sobre a reparação, a procuradora regional da República Inês Soares levantou a necessidade de uma avaliação detalhada dos objetivos. “Fazendo uma provocação, que tipo de reparação queremos? Para os trabalhadores ou para o grupo? (…) Mesmo que a causa seja justa e necessária, temos que pensar em questões desafiadoras. A empresa não é a mesma, não podemos dizer que a Volkswagen, que permitia tortura em sua empresa, é a mesma de hoje”, disse.
O promotor do Ministério Público de São Paulo Eduardo Valério, que atua no caso, respondeu ao questionamento de Inês. “Nossa ideia é de buscar reparação a partir de um dano. E seguramente não será de ordem individual. Nós, do MP, agimos por legitimidade do coletivo, do interesse difuso. Trabalhamos com memória e dano. O dano é o desconforto ou a insuportabilidade de perceber que uma das maiores empresas nacionais cooperou com um governo repressor”, disse.
“Uma empresa que entregou suas forças de trabalho para torturas em uma promiscuidade que desrespeita a ordem econômica da livre iniciativa, permitindo que operários fossem reprimidos por delito de opinião, porque eram filiados a tal partido. Essa questão é de cada brasileiro, porque falamos de liberdade individual, uma conquista que vem, no mínimo, do iluminismo.”
Valério ainda afirmou que a reparação não deve ser financeira. “Melhor que não seja. Podemos buscar formas mais efetivas de não repetição. O mais importante, neste momento em que vivemos mais um golpe, agora criativo, sem tanques nas ruas, é reforçar a necessidade de mecanismos de justiça voltados para a não repetição. Mudanças estruturais, na área do esclarecimento, de que certas coisas não podem acontecer dentro de uma sociedade democrática. Falta-nos um memorial convincente do golpe de 1964, como existe no Chile, na África do Sul e no Uruguai.”
Para o promotor, o ideal será buscar uma solução extrajudicial com a empresa. “Precisamos identificar para onde vamos. Vamos tentar ao máximo os meios extrajudiciais. Não podemos esperar do Judiciário brasileiro facilidades em uma demanda envolvendo um pleito desta natureza, sobretudo em uma ordem golpista que vivemos hoje”, finalizou.
Fonte: RBA