André Calixtre: Poder e Dinheiro nas Eleições Brasileiras
O frágil pacto democrático erguido pela Constituição Federal de 1988 foi responsável por surpreendentes mudanças na estrutura social brasileira, no entanto, pouco alterou o subterrâneo processo de afirmação do subdesenvolvimento, cuja matriz mais importante é o quase exclusivo acesso dos ricos ao sistema político e burocrático que sustenta as decisões de Estado.
Por André Calixtre*
Esta afirmação seria considerada absurda se proferida no final da década de 2000, no auge das políticas promovidas pelo Partido dos Trabalhadores. Nesse período lulista, a promoção de mecanismos diretos de participação – como os conselhos de políticas públicas, as conferências nacionais e outras interfaces -, o resgate da capacidade do Estado em operar políticas públicas orientadas para a proteção social e, fundamentalmente, a perseguição de um modelo possível de desenvolvimento pela via da ativação e estruturação do mercado de trabalho parecia ter equacionado “pacificamente” problemas somente resolvidos a ferro e fogo na história dos países desenvolvidos. Como uma forte ilusão real, o avanço do modelo de desenvolvimento com Lula inaugurou para milhões de trabalhadores a vida social para além da bárbara sobrevivência, estruturalmente marginalizados, porém integrados ao processo de crescimento com distribuição dos fluxos de renda em favor do trabalho.
O tempo foi passando, e o acúmulo da participação popular no orçamento público começou a produzir grandes contradições. Uma análise rápida sobre a diferença entre as propostas de políticas públicas exigidas pelas Conferências Nacionais em diversos setores e a realidade truncada do arcabouço real do Estado de Bem-Estar Social já evidenciava a saturação dos compromissos assumidos pelo período constituinte, e que a sociedade brasileira estava a exigir mais transformações, sem perder aquelas que já representavam o maior salto civilizatório desde a experiência do trabalhismo no pós-guerra até o Golpe de 1964. No centro do problema estavam dois fenômenos gêmeos: a incapacidade de resposta do sistema político às novas demandas de uma sociedade em transformação; a perda da legitimidade do modelo representativo de democracia pactuado sob a forma do presidencialismo de coalizão.
O descompasso entre política e sociedade evidenciou-se cruamente no primeiro ciclo de manifestações de junho de 2013, enquanto ainda estavam centradas na questão do transporte público como direito. Nesse momento crítico, quando as manifestações massivas levaram a uma negociação estratégica para a sobrevivência do regime político, em 24 de junho de 2013, o Movimento Passe Livre – cuja importância às manifestações foi tão grande que esse grupo simplesmente se exauriu e desapareceu após as vitórias de recuo do preço das passagens nas grandes cidades brasileiras, deixando para trás o seu principal objetivo, a tarifa zero para o transporte público – e o Governo Dilma, representante do auge do lulismo, estabeleceram um não-diálogo entre as demandas de uma sociedade nova e um Estado incapaz de interpretá-las e dar curso a um novo ciclo de desenvolvimento.
O quase pleno emprego e o crescimento econômico com redução das desigualdades no período mascararam esse processo de deterioração profunda da capacidade de o Estado representar progressivamente as demandas de uma sociedade em transformação. Em 2013, o chamamento feito pelos movimentos sociais a uma nova Constituinte, exclusivamente convocada para tratar da Reforma Política, era vista com descrédito pela classe política, mesmo dentro do campo progressista. Hoje, com os profundos retrocessos sociais, econômicos e cognitivos trazidos pela derrocada abrupta do lulismo por meio de um golpe à presidenta Dilma, uma Constituinte parece ser até uma solução conservadora diante do abismo colocado pela classe política encastelada no Governo Temer e a sociedade apartada dos centros de decisão do Estado. O Partido dos Trabalhadores conseguiu levar o modelo de desenvolvimento pactuado pela Constituição de 88 ao seu máximo grau civilizatório, pela força histórica do presidente Lula e pela especificidade de sua militância orgânica; no entanto, no interior das engrenagens do governo popular estava uma contradição letal: o poder do dinheiro, sustentando e capturando cada vez mais a máquina pública e o sistema representativo democrático.
Na primeira parte desta série de artigos, pretendo demonstrar, a partir da análise empírica do “Repositório de Estatísticas Eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral”, como a classe política não construiu seu poder com base no exercício da representatividade popular, e sim pelo consórcio infecundo com o capital. O mecanismo maior desta associação, que permitiu a transição da Ditadura Militar para a Nova República, foi a mercantilização das eleições. De maneira clara e explícita, ascender ao governo deveria ser um ato conjurado com o poder econômico. As campanhas, financiadas pelas empresas, e não pela sociedade, tiveram como determinações entre ganhadores e perdedores do processo eleitoral o acesso ao capital para a compra do poder. E o acesso mercantil é mais simples do que parece: ganha quem possui mais dinheiro. Qualquer reforma política que se julgue progressista deve ter como objetivo resgatar a Política como espaço público e comunitário de tomada de decisões coletivas, onde o Estado democrático de direito confunde-se com o Estado de bem-estar social por meio de duas grandes frentes de desmercantilização: das decisões políticas e das necessidades sociais.
Não somente a associação da Política com o Dinheiro tornou as campanhas cada vez mais caras e concentradas em poucos partidos vencedores, como também estabeleceu um processo adverso de seleção social de políticos, privilegiando aqueles que, obviamente, controlassem privadamente grandes somas patrimoniais, tornando a política um sistema dominado não apenas para os ricos, mas por ricos, excluindo massivamente a classe trabalhadora do processo efetivo de representação parlamentar ou executiva no Estado. Após o cruzamento entre as prestações de contas de campanha, as declarações patrimoniais e os perfis de todos os candidatos aos cargos de Presidente, Governador, Senador, Deputado Federal, Distrital e Estadual, Prefeito, Vereador e todos os vices respectivos, é impressionante constatar as altas médias patrimoniais dos políticos que conseguem chegar ao poder e aqueles que são derrotados no processo eleitoral. Ao que parece, o poder econômico diminui sensivelmente as chances de um cidadão de origem popular ascender ao sistema representativo, bastando observar a tabela abaixo.
Poder e Dinheiro dos Políticos em 2014 e em 2016 (R$ nominal) |
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Patrimônio Médio Declarado |
Custo Médio de Campanha de Eleitos |
Custo Total Eleições (eleitos e não-eleitos) |
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Cargo |
Eleitos |
Não-Eleitos |
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Presidente, Governadores e vices |
R$ 2.420.886,34 |
R$ 1.876.546,25 |
R$ 30.074.155,26 |
R$ 2.692.972.419,55 |
Senadores |
R$ 17.762.890,09 |
R$ 7.032.499,34 |
R$ 4.796.185,96 |
R$ 273.972.852,63 |
Deputados Federais e Estaduais |
R$ 1.779.373,65 |
R$ 197.513,64 |
R$ 855.487,00 |
R$ 2.438.971.884,69 |
Prefeitos e vices |
R$ 824.545,91 |
R$ 658.673,41 |
R$ 117.061,93 |
R$ 1.652.716.074,39 |
Vereadores |
R$ 196.617,37 |
R$ 198.484,71 |
R$ 8.146,30 |
R$ 1.480.402.147,26 |
Fonte: TSE. Repositório de Estatísticas Eleitorais. Elaboração: André Calixtre
As médias patrimoniais declaradas pelos candidatos eleitos são sensivelmente superiores a seus colegas não-eleitos, com exceção do cargo de vereador. Mas não somente isso, o sentimento de exclusivismo social é patente naquelas que se deveriam chamar Casas do Povo. Nas eleições federais de 2014, dos 517 deputados eleitos para a Câmara, 248 declararam possuir patrimônio superior a R$ 1 milhão. Apenas 12 deputados declararam não possuir patrimônio algum e 23 deputados são multimilionários, com fortunas superiores a R$ 10 milhões. A casa mais rica da República, no entanto, é o Senado: dos 27 senadores eleitos, 20 declararam patrimônios milionários, nenhum senador eleito declarou-se desprovido de posses, enquanto a casa abriga o político com o maior patrimônio declarado em 2014, que é o do Senador Tasso Jereissati, com quase R$ 390 milhões de patrimônio individual em valores nominais, substancialmente à frente do segundo maior patrimônio declarado, que é o do Senador Fernando Collor, com pouco mais de R$ 20 milhões em posses.
As casas do povo são abrigos de milionários cujo perfil é um abismo em representatividade do povo brasileiro. Entre deputados e senadores eleitos no último ciclo, 90% são homens, 80% declararam-se brancos e a mesma proporção possui ensino superior completo. Dentre as profissões mais comuns dos políticos das casas do povo, 269 declararam ter a política como profissão, ainda que não exista curso superior para tanto, em conjunto com 46 advogados, 44 empresários e 31 médicos. Pouquíssimos declaram-se em profissões tipicamente populares.
Os custos de campanha seguem a lógica elitista de acesso ao sistema político. Em 2014, um candidato a governador teve de angariar, em média, R$ 18,6 milhões em recursos de campanha para ganhar uma eleição. A presidenta Dilma Rousseff recolheu impressionantes R$ 350,5 milhões para derrotar o senador Aécio Neves e seus R$ 226,9 milhões de custo de campanha. As grandes cifras para acessar ao poder político não acabam no nível federal: um deputado estadual de São Paulo gastou em média R$ 1,1 milhão para ser eleito em 2014; mesmo sob proibição do financiamento empresarial em 2016, um vereador da capital do mesmo estado teve de angariar R$ 397 mil para vencer uma eleição, tendo sido a campanha mais cara a do vereador Milton Leite da Silva, do DEM, que custou aproximadamente R$ 2,4 milhões em doações privadas e recursos do fundo partidário. Ao todo, o custo das eleições salta os olhos: em 2014, auge do financiamento empresarial de campanha, os 26.240 candidatos aos cargos federais gastaram R$ 5,41 bilhões para concorrer; em 2016, já com as restrições enunciadas antes, o custo total das eleições municipais foi de R$ 3,1 bilhões, distribuídos entre 497.390 candidatos.
Sob este cenário maior descrito, fica a pergunta principal: qual a capacidade de este Sistema Político reformar-se a si mesmo? No sentido de aumentar a progressividade representativa, aproximando efetivamente o cidadão comum das decisões do poder – que somente é possível com a ruptura do perfil de candidatos eleitos em direção às características sociais, raciais e econômicas médias do brasileiro – o poder de autorreforma do sistema político é muito reduzido. Nessa distopia democrática, propostas do campo progressista são apropriadas pelo campo conservador com extrema facilidade, como é o caso emblemático do fundo público de financiamento de campanhas. Desenhado para ser um fundo exclusivo, limitado e igualmente distribuído entre as forças partidárias existentes, o Fundo Especial de Financiamento da Democracia conviverá com doações privadas de campanha, deixando, portanto, de atuar como elemento desmercantilizador do acesso da política e passando atuar como simples complemento de renda para os partidos predominantes. A força da proposta do Distritão mostra suas raízes patrimoniais, pois exacerba a conexão entre a riqueza pessoal, a capacidade individual de mobilizar recursos de campanha e o sucesso de políticos ligados às elites econômicas em conquistar as vagas do poder representativo à revelia absoluta do sistema partidário.
Na segunda parte deste artigo, vamos abrir as relações do poder e do dinheiro com os partidos políticos e analisar o impacto da proibição do financiamento empresarial de campanha no custo médio das últimas eleições municipais de 2016.
*André Calixtre é mestre em Economia Social do Trabalho e doutorando em História Econômica, ambos pelo programa de Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Unicamp.
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