Todo mundo vai perder com a reforma da Previdência, diz professor
Em uma semana em que Congresso Nacional é alvejado por delações da empreiteira Odebrecht, a proposta de reforma da Previdência enfrentará a sua primeira prova de fogo: o texto enviado pelo Planalto começa a tramitar na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Espinhoso, poucos governos no Brasil se atreveram a mexer nesse vespeiro.
Por George Marques, no The Intercept Brasil
Todo mundo vai perder com a reforma da Previdência, diz mestre em Direito
Com medo da perda do voto, essa relíquia preciosa em tempos de negação da política, parlamentares só resolvem enfrentar as reformas necessárias quando as finanças chegaram à beira do colapso.
Da maneira como o texto foi apresentado pelo governo, todos devem perder de alguma forma. Pelo menos, é essa a avaliação do professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Wagner Balera. Mestre em Direito Tributário, Balera conversou com o The Intercept Brasil sobre a reforma da Previdência, cuja discussão ainda promete ir longe e que impactará a vida de todos os brasileiros.
Mitos, meias-verdades e muitas informações desencontradas são proferidas sobre a Previdência. Em Brasília, os burocratas não se entendem sequer nas contas para identificar o número real do déficit previdenciário. Nesse emaranhado de tabelas e gráficos, o dois mais dois dificilmente chegará ao resultado quatro. Coisa de burocrata.
Para Balera, o governo usa um argumento falso para justificar o rombo da Previdência. Segundo ele, o problema não é a arrecadação, mas que parte do orçamento da Seguridade Social é constantemente desviado para outras finalidades. O professor também criticou a postura do governo em tratar a reforma da Previdência dos militares separadamente, como se fossem um grupo melhor que o restante da sociedade. Confira abaixo os principais pontos da entrevista:
The Intercept Brasil: Professor, começando com o básico, questiono: a reforma da Previdência é realmente necessária?
Wagner Balera: Eu considero que é algo absolutamente necessário. E o primeiro fundamento é que a sobrevida média do brasileiro aumenta constantemente. O sistema foi pensado para outra realidade. O que é o raciocínio previdenciário? Você está vivendo mais tempo, você vai ter que trabalhar mais. Esse é o principal motivo pelo qual uma reforma é necessária. É uma questão de dado estatístico, em virtude do aumento da expectativa de vida.
A reforma também se justifica tendo em vista a diminuição da natalidade, porque a Previdência funciona com uma lógica intergeracional. A geração presente é responsável pelo financiamento das prestações da geração pretérita, e a geração futura vai financiar as prestações da geração presente.
O governo tem utilizado um argumento falso, um argumento mentiroso, quando ele justifica a necessidade da reforma previdenciária. O Estado brasileiro – e não é esse governo aqui, nem o anterior nem o anterior ao anterior – utiliza a falsidade de que a Previdência está quebrada.
A Previdência não está quebrada?
Isso é uma enorme falsidade. O que é que está fazendo o Estado brasileiro? Ele está destruindo um modelo que a nossa Constituição criou que se chama Seguridade Social. A Constituição Federal de 1988 originou a Seguridade Social, na qual integram a saúde, a previdência e a assistência. Três setores englobados numa só realidade. E a Constituição criou um orçamento separado do Orçamento do Estado para a Seguridade Social.
A União tem as suas receitas, a Seguridade Social tem as suas receitas. Então, a Previdência integra o orçamento da Seguridade Social, que foi contemplado pela Constituição com diversas fontes de receita.
Quais fontes são essas?
A primeira, a mais antiga, é a contribuição sobre a folha. Você, como trabalhador empregado, paga uma contribuição sobre o seu salário. O seu patrão paga uma contribuição sobre o seu salário, e essa é a contribuição sobre a folha, que é chamada folha de salários, folha de pagamento. Essa é uma das contribuições.
Eu não posso falar assim: “A previdência está quebrada”. De fato, o que se arrecada com a contribuição sobre a folha não paga os benefícios devidos pelo INSS. Ficaria faltando dinheiro. Mas é por isso que existe a Seguridade Social, o orçamento da Seguridade Social e as despesas são da Seguridade Social, não da Previdência. É uma questão conceitual que não é da minha cabeça, é o que está na Constituição.
A Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) é um dos tributos de maior arrecadação do Brasil, só perde para o Imposto de Renda. Então, é um manancial imenso de dinheiro que o Estado brasileiro arrecada.
E para onde está indo todo esse dinheiro arrecadado?
Entrou tanto dinheiro que começaram a desviar esse dinheiro. Por isso que é falso o argumento do déficit. Porque, a partir de 1994, começaram a desviar dinheiro das contribuições sociais e continuam desviando.
Este ano, o desvio foi ampliado. Antes desviavam 20%, depois passaram a desviar 25%, e, agora, vão desviar 30% de um troço chamado Desvinculação das Receitas da União (DRU). Isso nada mais significa do que tirar dinheiro da Seguridade Social e jogar para qualquer outra coisa que o Estado queira fazer com esse dinheiro. Como é que você pode falar que o negócio tá quebrado se estão desviando dinheiro desse segmento para outras áreas? Então, esse é o falso argumento da reforma. A reforma é necessária, é imprescindível, mas não sob o argumento de que (a Previdência) está quebrada.
Qual o principal problema dessa reforma? Tem algum ponto principal de polêmica?
Eu considero imprescindível a fixação de uma idade mínima para as aposentadorias. Nada explica o fato de não haver essa idade hoje. Ela só não passou em 1998, na emenda constitucional nº 20, porque o Antônio Kandir, que era deputado (PSDB-SP) naquele tempo, errou o voto.
O outro ponto importante da reforma é aquele que veda a acumulação de benefício de aposentadoria com pensão. A Previdência significa que o Estado vai conceder a você a garantia das suas necessidades básicas. A Previdência não prometeu, nem promete a ninguém, a manutenção do status. Então, se alguém já recebe aposentadoria, por que também vai receber pensão do outro? Não tem sentido. Isso é completamente impróprio em um sistema universal e solidário, como é o da Previdência.
Na proposta enviada pelo governo Temer ao Congresso, os militares ficaram de fora.
Os militares são brasileiros como eu e você. Do ponto de vista previdenciário, assim como eu tenho direito a proteção social mínima, é isto que se deve a eles também. Uma coisa um pouco esquisita é você tratar esse grupo como se ele fosse um grupo à parte. Estou falando do ponto de vista previdenciário.
Do ponto de vista previdenciário, o militar fica velho como eu fiquei velho, fica doente como eu fiquei doente e assim por diante. Então, não tem por quê. Não pode ser tratado à parte. A reforma avança, mas ainda fica isso de excluir esse grupo como se esse grupo fosse melhor que os outros.
O que o sr. acha de os homens e as mulheres se aposentarem com a mesma idade?
É uma conquista da sociedade, a igualdade do homem e da mulher. Especialmente dos requisitos para a obtenção dos benefícios previdenciários, porque não existe nenhuma justificativa técnica para terem tratamento diferenciado. Até porque isso é estatística, as mulheres vivem mais tempo que os homens.
O senhor chegou a falar que uma unificação das regras do regime geral e dos funcionários públicos corrigiria uma injustiça, já que hoje temos dois mundos. Que injustiça seria essa e que mundos seriam esses?
O mundo dos servidores públicos é o mundo dos privilegiados. Os salários são a base contributiva deles e são a base do benefício que eles recebem. Por exemplo, se o servidor ganhava R$ 10 mil trabalhando 35 anos de serviço, que é o requisito para a chamada aposentadoria integral, ele vai continuar ganhando R$ 10 mil, o salário dele. Enquanto isso, no regime do INSS, se o sujeito ganha R$ 10 mil e o teto atual (do INSS) é R$ 5.189, ele vai ganhar, no máximo, R$ 5.189. Do ponto de vista previdenciário isso é injusto, porque cria duas classes: a classe A, que tem a melhor previdência; e a classe B, que tem uma previdência de até R$ 5.189.
Qual seria a justiça? A previdência garante as necessidades básicas. Se a nossa previdência tem um limite geral de R$5.189, ele tem que valer para todo mundo. “Ah, mas eu quero ter uma aposentadoria melhor”. Perfeitamente. Você compra um plano de previdência privada. Só você vai custear, não a sociedade toda. É nesse sentido que eu falo da injustiça.
O senhor acha que algumas ocupações deveriam ter um regime diferenciado como, por exemplo, a de trabalhador rural?
Há dois pontos perversos na proposta enviada pelo governo. Um é esse do (trabalhador) rural. Como é que ele contribui hoje? Com um percentual sobre o resultado da comercialização de sua produção. Porque assim é a vida do rurícola. É sobre o que ele produz que ele ganha. Segundo a proposta, o rurícola vai contribuir com salário, portanto é uma ficção. O trabalhador rural que recebe salário é exceção, é o que que trabalha na agroindústria. Então é uma ficção porque está se inventando que o rurícola ganha salário mínimo, e isso não é verdadeiro, porque muitos não ganham nem um salário mínimo.
É outra realidade. Então, eles nivelam todo mundo pelo salário mínimo, e o que é pior: para esse grupo vão ser exigidas noventa contribuições. Isto é, estão chutando as aposentadorias rurais para daqui a oito anos. Escandaloso. Um negócio dessa seriedade sendo tratado a toque de caixa.
Então, o produtor rural, do jeito que está sendo discutida essa reforma, sairia prejudicado?
Muito prejudicado. Eu achei um dos pontos mais perversos da PEC.
Outro agravante em relação aos mais pobres é o seguinte: como são corrigidos os benefícios em manutenção? Eles são corrigidos segundo critério de reajustamento do salário mínimo. Cada vez que o salário mínimo aumenta, aumenta nas mesmas proporções o valor dos benefícios de proteção. Esse é o critério atual. Isto não é adequado porque atrela uma realidade, que é a realidade previdenciária, a outra realidade, que é o salário mínimo. São coisas diferentes, porque não é toda vez que aumenta o salário mínimo que aumenta a arrecadação.
O governo manteve a vinculação ao salário mínimo, menos para o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Então, mais pra frente, pode ser que o benefício que hoje é um salário mínimo, amanhã seja de 70% do salário, 60% do salário mínimo, aviltando ainda mais a situação dos pobres. Uma coisa sem pé nem cabeça.
Nessa reforma em discussão no Congresso, quem serão os maiores beneficiados, as empresas ou os trabalhadores?
Todos vão perder.
Todos vão perder?
Todos vão perder. É uma reforma restritiva de direitos, o que é normal quando você está em uma crise, em um caminho para cortar despesas.
Se o estado fosse ideal no Brasil, ele deixaria de desviar o dinheiro, ele não prorrogaria a DRU, mas sim acabaria com a DRU, deixaria de desviar o dinheiro. Isso sim é uma responsabilidade do Estado. Independentemente de sua cor partidária, todos os governantes têm patrocinado esse descalabro que é a DRU. Então, a coisa ideal era acabar com isso. O dinheiro da seguridade social tem que acabar na seguridade social.
Fonte: The Intercept Brasil
Publicado originalmente no site Portal Vermelho