Dilma: Primeira tentação de um golpe é calar a divergência
Eram 16h desta quarta-feira (8), quando uma presidente Dilma Rousseff disposta, bem humorada e de coração valente recebeu a equipe do 247 em Brasília para uma de suas primeiras entrevistas à imprensa nacional desde que foi provisoriamente afastada do cargo por meio de um conturbado processo de impeachment, já retratado pela grande maioria da mídia global como um golpe parlamentar.
Nesta entrevista exclusiva, concedida aos jornalistas Leonardo Attuch, editor do 247, Tereza Cruvinel e Paulo Moreira Leite, dois de seus principais colunistas, Dilma falou de tudo: do golpe em si, da relação fria do mundo em relação ao Brasil, da Rio 2016, do pré-sal, da crise econômica e das tentações autoritárias do governo interino de Michel Temer. O Portal Vermelho reproduz abaixo as duas primeiras partes da conversa.
247 – Chegando ao Alvorada, presidente, é preciso passar por uma barreira policial. Nós estamos visitando uma presidente da República ou uma pessoa detida numa prisão de luxo?
Dilma Rousseff – Eu não estou me sentindo presa. Mantenho meu direito de ir e vir. Mas essa barreira é extremamente constrangedora e ridícula.
Qual é a finalidade?
Eu tenho a maior curiosidade. É uma sandice tamanha que uma explicação seria: enlouqueceram. Mas como eles não enlouqueceram, presumo que querem saber quem me visita. Politicamente, quem me visita. Para quê? Para saber em quem deve ser feita pressão.
Uma pesquisa divulgada hoje pelo instituto CNT/MDA revela que a aprovação ao presidente interino Michel Temer é muito baixa. Diante disso, como tem sido sua articulação política, mesmo sabendo que é vigiada por essa barreira policial?
A minha articulação está baseada no exercício de uma coisa muito simples: o diálogo, o diálogo, o diálogo. Não tem outro exercício a ser feito, além da persuasão de que está em curso um golpe. Não se trata de um golpe contra o meu mandato apenas. É um golpe que coloca problemas sérios em relação a toda a institucionalidade brasileira. Você não dá um golpe em relação à presidência da República, que representa um contrato e teve 54 milhões de votos, sem as tentações de romper outros contratos.
A senhora pode citar exemplos?
Tirar o presidente da EBC foi um ruptura de contrato. Suspender contratos de publicidade foi também um ruptura de contrato. A primeira tentação de todos os golpes, sejam eles militares ou parlamentares, é calar, silenciar. Calar a divergência. Tentam proibir até a palavra golpe. A única e mera expressão os incomoda. Não foi à toa que um conjunto de parlamentares nos notificou para que disséssemos por que chamamos o golpe de golpe.
E o que a senhora fez? Mandou para eles o editorial do New York Times, que acusa o golpe no Brasil?
Não, eu não mandei o New York Times. Eu fui mais antiga. Mandei uma frase do Beaumarchais no Bodas de Figaro. Ela diz assim: “quando se cede ao medo do mal, já se sente o mal do medo”. Essa é a frase mais sintética. Eles querem calar porque têm medo. Têm medo do contraditório. Têm medo das manifestações políticas. Eles fecharam até o acesso ao Alvorada! Eu passei cinco anos aqui e nunca houve barreira. De repente, ela aparece e não sabemos por quê.
A senhora falava da tentativa de se calar a divergência. Há riscos de que esse governo provisório se transforme num regime de força?
Há esse risco, sim. Governos ilegítimos não gostam, por exemplo, da cultura. Extinguir o Ministério da Cultura, como fizeram, é atingir o simbólico, num país que precisa afirmar a diversidade nacional. Nós temos hoje um presidente interino que não tem um pingo de legitimidade e ainda não colocou os pés na rua. A força pode, sim, ser o próximo passo.
O presidente é interino, mas, em tese, legitimado por um processo de impeachment.
Esse processo de impeachment trata de seis decretos de crédito suplementar e do Plano Safra, que eu sequer participei da elaboração. Como não há o menor indício de crime de responsabilidade, trata-se, evidentemente, de um golpe. O fato é que se criou uma situação absurda no Brasil, com esse impeachment feito com base numa lei de 1950, com partes imensas que não estão reguladas. Temos um presidente interino que desmontou toda uma estrutura de governo. Ele desmonta programas e políticas públicas com zero de legalidade e assim fica mesmo difícil ir para a rua. Ele não tem legitimidade nenhuma. Sabe o que mais surpreende correspondentes internacionais e os emissários de governos estrangeiros que nos visitam?
O que, presidente?
O fato de nós estarmos vivendo uma situação única. Eu sou a presidenta eleita. Eu não saí do meu cargo. Eles são interinos, provisórios e acham que podem desfazer tudo. Uma coisa que eu tenho certeza que ocorrerá na volta será uma modificação dessa lei. Sem isso, o presidencialismo no Brasil não será uma farsa. Hoje, muitos falam em parlamentarismo. Alguns, em semiparlamentarismo. Outros, em semipresidencialismo. Mas é preciso que se diga que parlamentarismo no Brasil significa a hegemonia conservadora.
Essa lei de 1950 foi feita por um político gaúcho, chamado Raul Pila, que era um doutrinário do parlamentarismo. Depois, foi regulamentada por outro político gaúcho, o Paulo Brossard, que também era parlamentarista. De certo modo, o parlamentarismo tenta se impor sobre o presidencialismo, sem que o povo seja consultado?
Muito bem observado. Sabe quem era o Raul Pila? Um representante do Partido Liberal. O Paulo Brossard, idem. Essa lei de 1950 expressa uma visão parlamentar do poder. No parlamentarismo, o presidente pode ser retirado por um voto de desconfiança. O presidente também pode convocar novas eleições gerais e dissolver o parlamento. No nosso presidencialismo, deveria haver um equilíbrio. Digo isso porque o que aconteceu no Brasil foi uma eleição indireta travestida de impeachment, e, portanto, golpista, numa manobra em que todo o poder vai para o governo provisório e nenhum poder fica com quem foi legitimamente eleito. Portanto, algo está errado.
Esse parlamentarismo imposto à força é a principal expressão do golpe?
São várias as camadas do golpe. Uma delas, a mais óbvia, o processo de impeachment sem crime de responsabilidade, que culminou nessa eleição indireta. Depois, essa situação de um novo regime, que permitiu a um governo interino mudar as políticas públicas sem nenhuma legitimidade. Será preciso, num futuro breve, discutir os limites da interinidade.
A senhora vai rever tudo o que o presidente interino fez ou não há nada que possa ser aproveitado?
Teremos que rever, sem sombra de dúvida. Não existe hipótese de deixar o ministério de Ciência e Tecnologia dissolvido. Outras mudanças que eles fizeram só têm sentido dentro da estratégia deles, mas não atendem ao desejo da população. Por exemplo: quando retiram o S da Previdência Social, e colocam o ministério debaixo da Fazenda, isso expressa uma visão de mundo. Qual é? Retirar direitos dos aposentados e dos trabalhadores. Quando colocam o Incra na Casa Civil, isso também visa cortar direitos dos trabalhadores rurais ou acomodar interesses fisiológicos. Nada disso pode continuar, sem falar com o que fizeram com mulheres, negros, homossexuais, pessoas com deficiências e todas as minorias.
Este governo provisório deu invisibilidade às minorias?
Deu invisibilidade total. E dar invisibilidade, nesse governo de homens brancos, é uma forma de silenciar. Quando você torna algo invisível, ninguém cobra. Além disso, essa senhora que assumiu a Secretaria das Mulheres [Fátima Pelaes] disse uma coisa muito grave.
A que a senhora se refere?
Ela disse, depois se desdisse. Mas o que eles pensam é o que dizem pela primeira vez. Ela afirmou que não cabe aborto nem em caso de estupro. A lei brasileira foi sendo aperfeiçoada e mudada. O aborto é permitido em casos de estupro, gravidez de alto risco e anencefalia. Ao agente público, não cabe gostar ou não gostar. Ele tem que obedecer e ponto. Mas ela é só um dos exemplos.
Quais seriam os outros?
Depois veio o ministro da Saúde e disse que o SUS não cabe no orçamento. O outro falou em cortar o Bolsa Família, que custa 0,5% do PIB. Em seguida, se falou em desvincular o ganho dos aposentados do mínimo. Isso é muito grave. Atinge 70% dos aposentados, 23 milhões de pessoas. Se fizerem isso, nunca mais o benefício do aposentado será um salário mínimo. Vai voltar ao que era no tempo do Fernando Henrique Cardoso.
Essa interinidade não estaria ao menos tendo o mérito de revelar ao povo brasileiro qual é a verdadeira face da direita brasileira?
Ontem, recebi aqui um grupo historiadores, que são estudiosos da escravidão. Eles falaram uma coisa em que têm toda razão. A lógica do privilégio ainda é muito forte no Brasil. Ela se expressa nesse desrespeito aos mais pobres. Me falaram de um clube no Rio de Janeiro, onde as babás não podem se sentar nem ir ao banheiro. Infelizmente, ainda há esse sentimento no Brasil. Quando o pobre sobe um pouco, a Casa Grande surta.
Fonte: Brasil 247