João Feres: A Transparência e a transparência da mídia brasileira
Escrever sobre a mídia brasileira é uma atividade que exige do redator com algum senso crítico uma resiliência inumana, pelo menos um estômago reptiliano, para suportar a total falta de escrúpulos e falta de profissionalismo jornalístico que impera nas redações dos grandes veículos noticiosos de nosso país.
Por João Feres Júnior*
O caso que quero tratar aqui é o da recente onda de publicações acerca da ONG internacional Transparency Internacional e o “escândalo da Petrobras”. OEstadão dessa vez foi mais longe que a concorrência. Um editorial do dia 12 de fevereiro abre com o seguinte período: “Entre muitas outras proezas fantásticas, todas elas carregadas nas tintas da mistificação e do ilusionismo, o lulopetismo gaba-se de ter logrado projetar o Brasil no cenário internacional”.
De cara já impressiona o nível elevado de politização do texto, e aqui me refiro à politização no sentido do estabelecimento de campos de exclusão separando o eu que fala de seu inimigo. Essa concepção da política como guerra, quando praticada no campo do discurso, vem sempre acompanhada de farta linguagem pejorativa. Só nesta curta passagem temos “proezas fantásticas” com sabor claramente irônico, “mistificação”, “ilusionismo” e “lulopetismo”. Não é somente o tom vitriólico da overture, que mais faz lembrar um panfleto incendiário de extrema esquerda ou extrema direita, mas também o uso de termos como “lulopetismo”, que foi cunhado com o intuito explícito de ofender e rebaixar tanto Lula quanto o PT. O Wikitionary traz a seguinte definição: “petismo com o culto à personalidade de Luiz Inácio Lula da Silva”. Logo em seguida ilustra o uso do termo com uma citação de Ronaldo Caiado.
Que os adversários políticos de Lula e do PT façam isso é de se esperar, pois batalhas terminológicas são parte da política inclusive em regimes democráticos. Agora, que a grande mídia se utilize do termo com abandono isso é sinal alarmante do nível elevado de sua politização ou, porque não dizer, de partidarização. O termo não é usado somente por jornalistas militantes do quilate de Augusto Nunes e Merval Pereira, mas também em editoriais dos jornais O Globo e Estado de S. Paulo.
O editorial do Estadão então prossegue argumentando que a única projeção no cenário internacional de verdade que o “lulopetismo” logrou foi fazer do escândalo de corrupção da Petrobras o “segundo maior esquema de desvio criminoso de recursos públicos do mundo”, segundo pesquisa divulgada pela “ONG Transparência Internacional”. Mantendo o tom de agressão, o texto segue dizendo que o “escândalo do petróleo” é “emblemático da corrupção generalizada que, hoje se sabe, tomou conta da administração federal a partir da determinação de Lula e sua tigrada de viabilizar, fosse como fosse, o projeto de perpetuação do PT no poder”; e que o “grande legado” de Lula foi “a inoculação da administração com o vírus da maracutaia”.
Novamente uma enxurrada de termos pejorativos, agora acolchoando a tese de que foram Lula e o PT que criaram a corrupção na administração pública em nosso país. Tal tese não resiste ao exame mais superficial da história recente do Brasil, ou mesmo ao estudo dos autos das Operações Lava Jato e Zelotes, nos quais, só para citar um exemplo, Aécio Neves já foi citado por três delatores diferentes como receptor de propinas milionárias, isso sem falar do ex-presidente de seu partido, o PSDB, Sérgio Guerra. Ora, é compreensível que uma pessoa mistificada pela ignorância possa aderir a tal tese, mas um editor de grande jornal, com o conhecimento que essa posição exige, adotá-la dessa maneira é sinal inequívoco da conversão da prática jornalística em instrumento de ação política.
Mas o pior ainda está por vir. Lá pelo meio do texto, o editor do Estadão volta com a mesma referência do início: “Mas é preciso levar em conta que a pesquisa feita pela Transparência Internacional …”. Paremos aqui. Ora, para refutar a acusação de que Lula e o PT inventaram a corrupção uma pessoa precisa fazer algum esforço para buscar fontes alternativas de informação ou reavivar sua memória do passado já distante. Mas este editorial contém uma inverdade muito mais flagrante. Ao contrário do que ele afirma duas vezes, a ONG Transparência Internacional (TI), que produz entre outras coisas um índice de percepção da corrupção em cada país, não fez pesquisa alguma, mas sim uma votação em seu site.
Como quase sempre, o diabo mora nos detalhes, e para saber os detalhes é preciso investigar, coisa que a grande mídia nacional se privou de fazer neste caso. A diferença entre pesquisa e votação é grande. Só para nos atermos à TI, seu Índice de Percepção da Corrupção tem como base outros índices elaborados por instituições que ela, TI, considera idôneas. Tais instituições elaboram seus índices baseadas na opinião de experts, por meio de procedimentos que o site da própria TI não esclarece. Mas a notícia alardeada não tem nada a ver com o índice. Ela é produto de uma nova iniciativa da TI chamada Unmask the Corrupt, dentro da qual a ONG decidiu fazer uma votação aberta aos internautas dos maiores casos de corrupção no mundo, com um pequeno detalhe, a própria TI forneceu a lista de 15 casos para serem votados, como me informou uma de suas funcionárias. Dos 15 casos escolhidos pela TI só o escândalo da Petrobras era brasileiro, os outros todos de países tão díspares quanto EUA, Ucrânia, Angola, Líbano e Guiné Equatorial.
A essa altura do campeonato o leitor mais crítico começa a duvidar dos motivos não somente da mídia nacional, mas também da Transparência Internacional. Como uma ONG cujo principal capital deve ser a credibilidade faz uma votação desse tipo? Qual o significado possível do resultado dessa votação? Ora, até as pedras do chão sabem que pouquíssimos internautas teriam conhecimento de todos esses casos de corrupção. Não existe uma aldeia global de internautas com informação total. Pelo contrário, o internauta tende a conhecer muito mais o que acontece em seu país do que em outros países do mundo, particularmente notícias de corrupção, que são geralmente matéria de política nacional. Da lista da TI somente dois casos atraíram cobertura internacional, o da Fifa e do vice-presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, que recebeu intensa cobertura da mídia internacional em língua inglesa devido aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos no país. Isso, juntamente com o fato da Ucrânia ter uma população grande (45 milhões de habitantes) e estar polarizada politicamente explica o caso Yanukovych ter vencido a votação. Mas como explicar o segundo lugar da Petrobras?
Não é difícil. A cobertura do caso Petrobrás na mídia internacional não é intensa. Ou seja, é muito razoável supor que os votos no caso tenham vindo esmagadoramente de internautas brasileiros. Agora, a comparação entre as nações-sede dos casos já explica quase tudo. De um lado Brasil, mais de 200 milhões de habitantes, quinto país no mundo em número de usuários de internet (à frente de Rússia, Alemanha, França e Reino Unido) de outro Portugal, República Dominicana, Tunísia, Angola, Chechênia, Líbano, Panamá, Egito, Mianmar, Guiné Equatorial e Ucrânia. Como seria possível que internautas desses países, muitos deles extremamente pobres e carentes no acesso à internet, poderiam competir com os internautas brasileiros em tal votação? Os dois casos corrupção escolhidos pela TI em países mais populosos que o Brasil são o de uma companhia pública na China e outro do estado do Delaware nos EUA. Mas estes também não são competição. A China restringe fortemente o acesso de seus cidadãos à internet. Já o caso norte-americano diz respeito a um estado nanico cujo caso de corrupção teve pouquíssima reverberação pública e política. Em suma, nessa competição da infâmia, as cartas pareciam marcadas para o Brasil vencer. Não foi dessa vez, contudo, mas ficou com um honroso segundo lugar.
Há algo mais a se dizer sobre a falta de propósito e a distorção dos resultados produzidos pela votação da TI. Em contextos altamente politizados, como os do Brasil atual, EUA, Ucrânia e tantos outros países, a internet reflete ou mesmo intensifica a radicalização encontrada na política. Pesquisas sobre temas nas redes sociais feitas durante o período eleitoral e durante as manifestações de 2013 mostraram a existência clara de pelo menos dois grandes grupos de internautas que trocam informações endogenamente: um petistófilo e outro tucanófilo, ou seria melhor dizer petistófobo, pois se define mais pelo ódio ao PT do que pela adesão imediata ao PSDB. Mas se a TI coloca em votação somente o “escândalo da Petrobras”, então os 11900 eleitores brasileiros que votaram nele eram provavelmente em sua esmagadora maioria do campo petistófobo. Em outras palavras, um internauta petistófilo não teria incentivos para votar particularmente porque a TI sequer listou o Mensalão Tucano, ou o Trensalão, ou a Privataria Tucana, etc. Em suma, o que revela essa votação? Que internautas petistófobos curtem o site da TI.
Não obstante o parco valor da votação promovida pela TI, a grande mídia brasileira noticiou em massa. Deu no Valor Econômico, na Folha de S. Paulo, noEstadão (matéria e editorial), no Jornal Hoje e no Jornal Nacional. Nenhum desses meios cometeu o abuso de tomar votação por pesquisa, como fez o editorial do Estadão, mas todos noticiaram essa eleição mal-ajambrada, para dizer o mínimo, da Transparência Internacional como uma notícia relevante. O Jornal Nacional deu o tom. Afetando uma seriedade de personagem de dramalhão mexicano, William Bonner abre a edição do dia 10 de fevereiro com as seguintes palavras: “Nesta quarta-feira (10), a imagem da empresa que já foi orgulho brasileiro se transformou em cinzas. O mundo conheceu o resultado de uma enquete que a ONG Transparência Internacional organizou na internet”.
A grande mídia nacional e algumas de suas fontes reclamam para si credibilidade. Contudo, o que entregam na prática é um produto opaco contaminado de distorções e inverdades. Até quando a democracia brasileira vai suportar essa empulhação?
*João Feres Júnior é cientista político, vice-diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (Lemep) e do Instituto de Estudos Sociais e Políticos – Iesp
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