A mulher no século 21 à sombra do patriarcado
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, o casal mais influente do século 20, protagonizou uma história de amor e consolidação de valores sociais que por muito tempo servirá para muitas gerações. Jamais casaram ou tiveram filhos apesar da devoção mútua um ao outro com total liberdade. Foram os precursores de estilo de vida à frente do tempo que viveram.
Por Angelina Anjos*, especial para o Vermelho
Mesmo que as coisas de menino e de menina, de homem e de mulher, possam variar temporal e historicamente, de cultura em cultura, conforme convenções elaboradas socialmente, em pleno século 21 as mulheres ainda convivem com o estigma que devem ser protegidas pela figura masculina e reproduzem conceitos que violam a capacidade de decisão quando utilizam entre mulheres termos pejorativos, como forma de julgar comportamentos.
Desde as Ordenações Filipinas à Lei de 1962, que modificou o Código Civil de 1917, a legislação brasileira sempre foi marcada pelo conservadorismo. O Código Civil Brasileiro de 1917 colocava a mulher no mesmo nível do menor e essa proposição absurda resistiu a todas as transformações ocorridas na sociedade brasileira durante quase 50 anos, só sendo revogada em 1962.
Em 1962 a Lei 4.121 modificou o Código de 1917, entretanto, conservou muito de sua ideologia patriarcal, conferia ao marido a chefia da sociedade conjugal, por uma necessidade de haver quem lhe assumisse a direção.
Assim como o Código havia conservado muito da ideologia patriarcal das Ordenações Filipinas, do final do século 16, que regeram direito civil brasileiro durante todo o período colonial, se prolongaram pelo Império e alcançaram as primeiras décadas da República.
A década de 1970 foi marcada por mulheres em todo o mundo, que reivindicavam por maiores direitos na sociedade, um período de grandes tensões políticas. Mulheres brilhantes realizaram a chamada revolução dos sutiãs. Elas literalmente rasgaram e queimaram o sutiã como forma de protesto. Reivindicavam por liberdade sexual contra o machismo predominante na sociedade.
Em 1984, corria no Congresso Nacional, já tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados, um novo projeto de Código Civil. Durante a tramitação foram incorporadas, as disposições do “Esboço de Novo Estatuto Civil da Mulher”, de autoria das advogadas Sílvia Pimentel e Florisa Veruci.
Na tentativa de ampliar direitos, o projeto foi objeto de um amplo processo de discussão no interior do movimento feminista e chegou à Câmara subscrito por 49 entidades de mulheres.
O projeto suprimia a atribuição da chefia da “sociedade conjugal” ao marido. A redação final foi à seguinte: “A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.” O parágrafo único ressaltava que havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, desde que as questões sejam essenciais e não se trate de materna personalíssima.”
É verdadeiro afirmar que por longo período a mulher esteve subjugada, como é inconteste que muitas outras resolveram abrir alas para um novo momento de superação de uma sorte tão desvalida.
O século 21 inaugura um Código Civil proveniente das lutas enfrentadas pelos movimentos de mulheres. Garante direitos e possibilita o anúncio de um diálogo entre os valores do mundo doméstico e os valores do mundo público.
A Lei 11.340 – “Lei Maria da Penha” é indubitavelmente um marco civilizatório para o movimento feminista, anterior a ela não existia legislação específica para tratar de violência doméstica e contra a mulher, era enquadrada no art. 129 do CP e na Lei 9.099/95, que conforme art. 61, os juizados especiais são as instâncias competentes para processar e julgar as infrações penais de menor poder ofensivo. Assim o agressor obtinha diversas formas de se beneficiar, seja pela conversão da pena privativa de liberdade em pena pecuniária através da transação penal, que depois de algum tempo adotou-se a prática de pagamento de cestas básicas ou pela possibilidade da suspensão do processo.
A Lei Maria da Penha tipificou e definiu a violência doméstica e familiar contra a mulher como crime. Além de proibir as penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas) e estabelecer as formas da violência doméstica contra a mulher como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, independentemente da sua orientação sexual.
Entretanto o histórico de desigualdade e injustiça social trás consigo em pleno século 21 a herança patriarcal, autoritária, competitiva e agressiva reproduzida por algumas dezenas de mulheres que assumem a vida pública e as que acatam como imperativo a vida privada.
As mulheres são protagonistas dessa aventura humana que é nos liberar da sombra do patriarcado, ainda tão forte dentro de nossos lares. A ruptura com o modelo machista de existir deve ser exercício diário e passado para as futuras gerações de homens e mulheres.
A contemporaneidade exige de nós mulheres o instinto de uma fera, a defesa intransigente de nossos espaços, sem que para isso tenhamos que perder a feminilidade, pelo contrário, chegou o tempo de admitirmos para nós o quanto é importante exercermos o papel de mulher, que busca sempre mais um pouco à frente de seu tempo. Somos as preservadoras da vida e o meio ou fio condutor que abre passagem em nosso cotidiano ao potencial criativo da alma feminina.
Que tenhamos a coragem de viver com todas as mulheres que habitam em nós, que possamos exaltar e ratificar todas aquelas que estiveram no movimento para nossas liberdades individuais e de gênero. Que possamos ser a expressão e a marca do terceiro milênio, reconciliadas com nossa alma feminina poderemos quantitativa e qualitativamente transformar esse estado predatório em um processo criativo coletivo. A nossa sustentabilidade existencial e relacional depende do resgate da nossa humanidade.
*Angelina Anjos é assistente social, militante da luta pelos direitos humanos, membro do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça e filiada ao Partido Comunista do Brasil no Pará
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