Perda de 22% de floresta nativa para “desertos verdes” prejudica drenagem e aumenta fluxo de enxurradas, erosão e assoreamento de rios
Publicado pelo portal Vermelho
Diante da dimensão das inundações no Rio Grande do Sul, especialistas têm se debruçado sobre os fatores que contribuíram para essa catástrofe, destacando o papel da redução da vegetação nativa no estado, trocada pelos chamados “desertos verdes” de soja, pasto e madeira certificada, por exemplo. Dados do MapBiomas revelam que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de sua cobertura vegetal original, o equivalente a 22% do total presente em 1985.
Enquanto isso, áreas destinadas à agricultura, silvicultura e urbanização experimentaram um crescimento significativo. Esse cenário levanta questionamentos sobre o impacto ambiental dessas transformações. Especialistas apontam que a perda da vegetação nativa pode ter contribuído para as inundações de diversas formas.
Em uma entrevista à Tutameia TV, João Pedro Stédile, dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), apontou várias causas subjacentes, incluindo questões ambientais e políticas. Stédile destacou que cerca de 15 assentamentos, não apenas na Grande Porto Alegre, mas em outras regiões próximas a rios, foram severamente afetados pelas inundações.
Ele enfatizou que, embora não tenham sido registradas perdas de vidas humanas na Grande Porto Alegre, 420 famílias perderam tudo, desde casas até lavouras e animais, e agora estão alojadas em abrigos providenciados pelo MST. Stédile lamenta como a grande imprensa deixa de identificar as causas das inundações, em cumplicidade com os governos locais, incluindo o avanço do monocultivo de soja no Rio Grande do Sul, uma denúncia que é corroborada pelo relatório da MapBiomas.
“Essa soja que vai para exportação como commodity não paga nada de imposto, portanto não contribui com a infraestrutura social, seja de escola, de professores, de estradas, porque elas não pagam ICM.” Ele também aponta outros graves problemas que a monocultura provocam, que poucos percebem. “Essa monocultura da soja, assim como outras monoculturas da cana, do algodão, depois que você colhe, fica lá a terra como está agora, sem nada em cima, sem nenhuma cobertura vegetal.”
Stédile também criticou as mudanças no Código Florestal, que diminuíram as margens de reserva legal e afetaram a proteção das áreas ribeirinhas. Ele culpou o governo estadual, liderado por Eduardo Leite (PSDB), por amenizar a legislação ambiental e priorizar interesses imobiliários em detrimento da preservação ambiental. Ele destacou a mudança na terminologia do Rio Guaíba de “rio” para “lago”, facilitando a especulação imobiliária às custas do meio ambiente.
No entanto, Stédile também mencionou esforços de recuperação em andamento, incluindo um levantamento detalhado dos assentamentos afetados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e um apoio financeiro internacional, obtido pela ex-presidente Dilma Rousseff, para ajudar na reconstrução.
“O agronegócio no Brasil é um parasita do Estado,” acrescenta ele, referindo-se ao como o lucrativo negócio dos latifundiários sempre apela aos recursos do governo, quando perde parte de sua margem financeira. “Nós precisamos mostrar para a sociedade que o agronegócio é um dos responsáveis pela crise climática e pela destruição da biodiversidade.”
Perda de cobertura nativa
Primeiramente, a vegetação nativa exerce um papel crucial na regulação do fluxo de água, retardando a velocidade das enxurradas e reduzindo o impacto nos leitos dos rios. Além disso, as raízes das plantas nativas promovem a infiltração da água no solo, diminuindo o volume disponível para as inundações e protegendo contra a erosão.
A Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul alega que busca proteger e recompor áreas de vegetação nativa no estado. No entanto, críticos apontam que a retórica é falaciosa, já que a legislação ambiental estadual tem sido alvo de mudanças que fragilizam essa proteção. Decisões políticas recentes facilitaram o desmatamento e a conversão de áreas naturais em atividades agrícolas e urbanas, intensificando a perda de biodiversidade e os riscos de desastres naturais.
Para além das enchentes, a redução da vegetação nativa também está ligada a questões climáticas globais, como as mudanças climáticas induzidas pela ação humana. O aumento das emissões de CO₂ e o desmatamento contribuem para eventos climáticos extremos, tornando essencial a recomposição e preservação dos ecossistemas naturais.
Diante desse contexto, a necessidade de ações urgentes para proteger e restaurar a vegetação nativa se torna evidente, já que monoculturas não contribuem para o meio ambiente como florestas nativas. São chamadas “desertos verdes” porque drenam de forma drástica os aquíferos, envenenam o solo e reduzem a diversidade de pássaros, insetos e outros animais. Plantações de eucaliptos para produção de celulose, por exemplo, parecem florestas, mas são a forma mais devastadora de deserto verde.
Iniciativas como o Programa de Revitalização de Bacias Hidrográficas e o Programa Estadual de Recuperação da Vegetação Nativa são passos importantes nesse sentido, mas é necessário um compromisso contínuo e abrangente para enfrentar os desafios ambientais que o estado enfrenta.
Mudanças na ocupação do solo
O MapBiomas é uma iniciativa que utiliza imagens de satélite para monitorar mudanças nos padrões de uso do solo em todo o Brasil. O pesquisador Eduardo Vélez explica que, ao longo das décadas, o Rio Grande do Sul perdeu uma quantidade significativa de sua vegetação nativa, especialmente nas formações campestres, adaptadas ao clima subtropical do estado.
Essa perda, no entanto, não se traduz apenas na redução da biodiversidade, mas também tem implicações diretas nas inundações. Entre 1985 e 2022, a área destinada à soja no estado cresceu 366%, passando de 1,3 milhão para 6,3 milhões de hectares. Além disso, a silvicultura, que envolve o plantio de florestas para exploração comercial, também teve um crescimento significativo, saltando de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares no mesmo período.
O avanço da urbanização também desempenhou um papel importante, com um crescimento de 145% nas áreas urbanizadas entre 1985 e 2022. Esse aumento reflete não apenas uma expansão demográfica, com a população passando de 8,4 milhões para 10,8 milhões no mesmo período, mas também uma mudança na configuração do solo e na ocupação do espaço.
Boom das commodities e legislação ambiental
A vegetação nativa atua como um “freio” para a água da chuva, criando obstáculos que diminuem a velocidade do escoamento da água para os leitos dos rios e áreas mais baixas. Mesmo após transbordamentos, essa vegetação funciona como um freio para a drenagem da água. Além disso, a vegetação nativa funciona como um “dreno” para parte da água da enxurrada, mantendo o solo mais permeável e reduzindo a quantidade de água que flui diretamente para os leitos dos rios. Por fim, a vegetação nativa ajuda a mitigar a erosão do solo e o assoreamento dos rios, o que pode diminuir a profundidade dos rios e aumentar o risco de inundações.
Embora a soja cubra o solo e consuma água durante seu crescimento, ela não possui as mesmas capacidades de retenção de água e solo durante as chuvas. O sistema de raízes da vegetação nativa é mais diversificado e pode captar água em diferentes profundidades, enquanto na cultura da soja, especialmente durante o preparo do solo e a fase inicial de crescimento, o solo está menos protegido.
O “boom” no preço das commodities, principalmente no início dos anos 2000, pode ter impulsionado a conversão de áreas de vegetação nativa em lavouras de soja, especialmente em solos férteis e bem drenados no norte do Rio Grande do Sul.
No entanto, a redução da área de vegetação nativa também foi impulsionada por mudanças na legislação ambiental, como um decreto estadual em 2015 que reduziu as exigências para o desmatamento de áreas de vegetação campestre e alterações no Código Florestal do Estado em 2019.
Essas mudanças na legislação ambiental foram criticadas por associações como a Associação dos Servidores da Sema-RS (Assema) e a Associação dos Funcionários da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (AFFZB), que afirmam que as alterações na legislação ambiental estadual incentivaram a perda de vegetação nativa.
Em resposta, o governo do Estado afirmou que as alterações na legislação ambiental buscaram modernizar a legislação estadual e promover o desenvolvimento responsável, negando que tenham sido nocivas para o meio ambiente.
Um problema global, mais que local
A redução na vegetação nativa não é necessariamente a principal razão por trás desses eventos climáticos extremos. Para especialistas, as mudanças climáticas, resultantes da ação humana, desempenham um papel central no agravamento das inundações. A liberação de CO₂ na atmosfera proveniente da queima de combustíveis fósseis e outras atividades, como o desmatamento, tem impactado significativamente o clima, aumentando a frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, incluindo chuvas.
Mesmo solos bem drenados, com vegetação nativa, podem ficar saturados, contribuindo para o aumento do volume de água nos leitos dos rios durante períodos de chuvas intensas. No entanto, é importante a recomposição da vegetação nativa para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Estudos mostram que as vegetações nativas são mais eficazes na captura de CO₂ e no armazenamento de carbono no solo, ajudando a reduzir os impactos das emissões de gases de efeito estufa.
A Associação dos Servidores da Sema-RS também destaca a necessidade de recomposição da vegetação nativa do Estado, citando a falta de institucionalização das metas de recuperação previstas no Plano Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg).
Em resposta às críticas, a Secretaria do Meio Ambiente do RS (Sema) menciona diversas ações em andamento para proteção e recuperação da vegetação nativa, como o Programa de Revitalização de Bacias Hidrográficas e o Programa Estadual de Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg/RS). A Sema também planeja lançar um edital para promover a conservação em áreas privadas por meio do pagamento por serviços ambientais.
Apesar desses esforços, a secretaria reconhece que as mudanças climáticas estão desafiando a capacidade de adaptação do Estado, destacando a necessidade de medidas de curto, médio e longo prazo para lidar com os impactos dessas transformações ambientais.
Enquanto especialistas e autoridades continuam a debater as causas e soluções para as inundações no Rio Grande do Sul, fica claro que uma abordagem integrada, que leve em consideração tanto a mitigação das mudanças climáticas quanto a proteção e recuperação da vegetação nativa, é essencial para enfrentar esse desafio complexo e cada vez mais urgente.
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