Especialistas explicam, de forma simplificada, como são feitas as pesquisas mais confiáveis e discutem impactos das fake news sobre ciência
Por Vital Neto
Desde o início da pandemia da Covid-19, os cientistas ganharam espaço cativo nos noticiários. O número de reportagens sobre pesquisas relacionadas ao vírus não para de crescer. Como se não bastasse a confusão gerada pela quantidade de informações, as notícias falsas, as chamadas fake news, inundam as redes sociais disseminando mentiras.
Para garantir que as pessoas entendam quais informações são mais confiáveis e o motivo de existirem estudos com resultados diferentes sobre o mesmo tema, é necessário que compreendam como é feita uma pesquisa científica.
Foi pensando nisso que o Jornal do Campus preparou essa matéria para explicar, de forma simplificada, como é o passo a passo de uma produção científica e discutir as implicações das fake news no cotidiano do público e dos cientistas.
Metodologia bem pensada
De acordo com Regina Célia Mingroni Netto, geneticista e professora do Instituto de Biociências da USP, o mais importante para garantir a qualidade de uma pesquisa científica é um bom planejamento, ou seja, uma boa metodologia. Ao ser questionada sobre o que é um bom planejamento de pesquisa, a professora respondeu:
“Em primeiro lugar é ter um bom tamanho amostral, que seja suficiente para responder a pergunta para a qual a pesquisa busca uma resposta, para que possa demonstrar a hipótese”
Segundo a pesquisadora, a diferença entre os tamanhos de amostras explica ”o porquê muitas vezes os resultados de duas pesquisas similares são muito diferentes: muitas vezes tem relação com o tamanho amostral”.
O segundo ponto destacado por Regina foi o grupo de controle, ou seja, aqueles indivíduos que serão usados para comparar os resultados.
“É importante haver um bom grupo de controle. O grupo que a pesquisa usa para comparar precisa ser adequado e equivalente ao grupo escolhido para observar os casos investigados”, explicou a geneticista.
Ela cita um exemplo: “Quero saber o efeito do cigarro na probabilidade da população de um determinado bairro desenvolver câncer de pulmão. O grupo de controle precisa ser com pessoas não fumantes do mesmo bairro, não poderia comparar com pessoas de outro bairro”.
Outro ponto que a pesquisadora destaca ser fundamental no planejamento de um estudo é a possibilidade de outros cientistas conseguirem replicar aquela pesquisa.
“Quando fazemos um experimento e encontramos uma correlação entre um fato e outro fato, é muito importante que outros pesquisadores, com circunstâncias um pouco diferentes ou com outro grupo populacional, encontrem a mesma associação. Se isso acontecer é positivo. Mas se eu encontro uma associação que nunca mais alguém acha, opa, o que será que isso significou?”.
A quarta questão a se levar em conta, segundo Regina, é a escolha de método de análise estatística mais apropriado ao que se estuda, principalmente em pesquisas que lidam com grandes quantidades de dados. Ela ainda destaca que é importante que os cientistas disponibilizem as bases dados utilizadas para que outros pesquisadores possam trilhar os mesmos passos.
“Quando os estudos envolvem uma enorme quantidade de dados, que são passados por análises estatísticas e computacionais muito sofisticadas, já há ferramentas de algumas revistas que obrigam o cientista a depositar os dados em um repositório público, porque se alguém quiser repetir as análises com os seus dados brutos, ela poderá fazer e chegar aos mesmos resultados”, explica.
“Tudo isso faz parte da metodologia. E é isso que é avaliado quando submetemos um artigo para publicação. Temos que deixar a metodologia muito explícita no trabalho científico para que os revisores entendam quais foram os passos que seguimos, como executamos o trabalho e então avaliar se a metodologia escolhida é adequada ou não”.
Desinformação intencional
O rigor da ciência, que faz com que somente as pesquisas mais sérias e confiáveis cheguem às revistas de maior credibilidade, é algo com o qual os pesquisadores estão habituados, mas o restante do público não.
Atualmente, as fake news competem pela atenção do público com as notícias sobre importantes pesquisas veiculadas nas mais respeitadas e rigorosas revistas científicas do mundo. As motivações dos responsáveis pela propagação de informações mentirosas são várias, desde pura ingenuidade até interesses financeiros e políticos.
Questionada sobre o impacto das notícias falsas, que distorcem ou até mesmo inventam pesquisas científicas com o intuito de manipular o público, a Regina destaca o poder que elas têm de desinformar.
“As fake news contribuem muito para a desinformação e deseducação do público. É abominável, do ponto de vista ético, divulgar alguma informação com uma intenção secundária, que seja política ou o que for”, afirma ela.
De acordo com ela, “é abominável, porque uma população que tem uma educação limitada em termos científicos, não têm capacidade de discernir fake news de uma informação científica sólida”.
“E nesse ponto as redes sociais são muito perigosas porque, para o frequentador de redes sociais, tem o mesmo peso uma informação de uma revista científica séria, de um cientista sério, e uma fake news” conclui.
Caio Túlio Costa, jornalista e co-fundador da Torabit, plataforma de monitoramento digital, explica que as notícias mentirosas existem há muito tempo, mas que agora, com as redes sociais, ganharam um alcance muito maior.
“Isso sempre aconteceu, a diferença é que agora isso está acontecendo em escala industrial”, afirma Caio Túlio. Agora você tem movimentos, em sua maioria políticos, criando notícias falsas exatamente para fazer comunicações negativas em relação a seus adversários”.
“Isso se vê muito em campanhas eleitorais, vimos isso no Brexit, na campanha do Trump, na do Bolsonaro aqui no Brasil e vemos isso em determinados países da Europa”, explica.
“E essa é a grande diferença, daí a necessidade cada vez mais premente das pessoas que trabalham com informação tecnicamente confiável se empenharem em mostrar que aquela informação é confiável, que tem credibilidade”.
“Você faz isso ou publicando essa informação em veículos que carreguem essa credibilidade, ou demonstrando de forma cabal que aquilo é crível, que é correto. Mas isso não elimina de forma alguma a possibilidade de uma informação científica, por mais checada e correta que ela é, ser distorcida, ser usada de forma errada ou tirada de contexto”.
Responsabilidade do jornalismo
Erros de jornalistas e imprecisões são utilizados com frequência por aqueles que querem se aproveitar da desconfiança que parte do público tem com o jornalismo para espalhar notícias falsas.
No entanto, mesmo que aconteça sem que haja intenção, o jornalismo não está imune de causar desinformação, como explica o jornalista Caio Túlio.
“De alguma forma o jornalismo também não é exato, é muito fácil encontrar informações incompletas ou distorcidas, também no jornalismo. Não estou dizendo que porque é feito tecnicamente que está imune, ao contrário, se há uma profissão que vive no erro, é o jornalismo, porque tudo é apurado e publicado muito rápido e sem tempo para checar direito”.
A geneticista Regina Célia Mingroni Netto destaca que existem revistas científicas com qualidades diferentes, com critérios mais ou menos rigorosos, e que o jornalismo precisa ter cuidado para não dar espaço para pesquisas publicadas em veículos questionáveis.
“O jornalista às vezes também tem dificuldade de discernir entre o que é um veículo científico de informação de qualidade e respeitabilidade científica de outros tipos de veículos”, afirma ela. “Mesmo dentro das revistas científicas, elas não são todas iguais, algumas são consideradas mais respeitáveis do que outras por uma série de critérios”.
“Muitos pesquisadores submetem um artigo a uma revista muito boa e de muita credibilidade, e esse artigo não tem a qualidade para aquela revista e é rejeitado naquele veículo e, no entanto, o pesquisador submete o mesmo artigo a outras revistas, de qualidade inferior, em que se publica sem muito rigor e o artigo é aceito. E, às vezes, um jornalista olha uma e olha outra e não sabe diferenciar a qualidade”.
O jornalismo precisa ser capaz de levar ao público informações científicas confiáveis, mas ao mesmo tempo, as notícias precisam estar em uma linguagem e apresentar exemplos que facilitem a compreensão do público. Isso exige jogo de cintura do jornalista, que precisa saber simplificar sem cometer erros.
Regina alerta que apesar da necessidade de se adequar o conteúdo das notícias para a compreensão do público, é necessário cautela.
“Às vezes tentamos simplificar uma coisa para um público leigo, mas o risco da gente escorregar para o impreciso e para o errado é muito grande”, pondera. “E, às vezes, fazemos isso com boa intenção. Mas a pessoa pode entender algo diferente daquilo que você quis dizer. Por isso o jornalismo científico é um desafio, porque exige o desenvolvimento da aptidão de simplificar a complexa linguagem científica para o leigo e ao mesmo tempo evitar a imprecisão”.
O jornalista Caio Túlio destaca que é natural que o público fique confuso com notícias que apresentam pesquisas com resultados contraditórios, por exemplo, estudos que dizem que o consumo de ovos fazem bem ou mal à saúde. Mas para ele, é obrigação do jornalismo expor essas contradições que fazem parte da construção do conhecimento científico.
“Esse é um problema com o qual a gente tem que conviver”, afirma. “Para a imprensa, a tarefa é inclusive explicar o contraditório. É explicar o contexto, o que cada pesquisa fez, onde queriam chegar, qual método foi usado e explicar essas diferenças. Mas temos que conviver com isso, você não vai conseguir eliminar isso de forma alguma. Isso faz parte da dança da vida humana, da competição entre as universidades e entre os laboratórios de pesquisa. Não tem como deixar de lidar com isso, expor o contraditório e tentar entender essas contradições”.