Descobertas arqueológicas e estudos fisiológicos desafiam mitos antigos, revelando o protagonismo das mulheres na caça e desconstruindo estereótipos de gênero
Publicado 16/01/2024 13:04 | Editado 16/01/2024 13:25
Em um passado distante, a narrativa sobre as atividades de caça na pré-história sempre foram permeadas por estereótipos de gênero, com a crença comum de que os homens eram os principais caçadores enquanto as mulheres se dedicavam apenas à coleta de alimentos. No entanto, pesquisadoras de diferentes universidades estão desenterrando estão desafiando essas suposições profundamente enraizadas, revelando um papel significativo e ativo das mulheres na caça.
Sophia Chilczuk, recém-formada na Seattle Pacific University, e Abigail Anderson, estudante de fisiologia na mesma universidade, começaram a questionar essas suposições quando arqueólogos, em 2018, descobriram os restos de uma caçadora durante uma escavação no Peru. Entre os ossos, encontraram um kit de caça, repleto de ferramentas, que desafiou as concepções tradicionais de atividades baseadas no gênero. A descoberta levou a uma revisão de outros sítios arqueológicos, e a conclusão, em 2020, foi de que a caça entre 8.000 e 14.000 anos atrás era neutra em termos de gênero.
Chilczuk e Anderson, junto a antropóloga biológica Cara Wall-Scheffler e outras duas pesquisadoras, publicaram uma revisão da literatura na PLoS One, concluindo que nas sociedades coletoras modernas, as mulheres desempenhavam um papel dominante na captura da caça. Histórias de caçadoras existiam, disse Wall-Scheffler, “mas compilar e mostrar que não são anedotas e sim um padrão, era o que estávamos tentando fazer com este artigo”.
O estudo examinou 63 sociedades coletoras modernas, nos séculos 19 e 20, utilizando a base de dados de lugares, idiomas, cultura e ambiente, encontrando evidências de mulheres caçando em 50 delas – sendo 87% desse comportamento intencional. Nas culturas em que a caça era crucial para a subsistência, as mulheres eram ativas 100% do tempo. Além disso, elas não só demonstravam flexibilidade em suas abordagens à caça à medida que envelheciam, como ajustavam suas estratégias com base na idade e no número de filhos ou netos. “Elas têm estratégias diferentes, mas ainda estão sempre saindo para caçar”, disse Wall-Scheffler.
Chilczuk enfatiza que os relatórios muitas vezes priorizam discussões sobre caçadores masculinos, tornando difícil descobrir os padrões de caça das mulheres. “Pode haver tantas coisas que estamos perdendo”, disse Chilczuk. “É natural ter suposições, mas é nossa responsabilidade desafiá-las para entender melhor nosso mundo.”
Tammy Buonasera, arqueóloga biomolecular da University of Alaska Fairbanks, que identificou o sexo da caçadora encontrada no Peru, elogiou a conclusão do estudo, destacando que as mulheres são frequentemente vistas “apenas como atrizes passivas na história”. O reconhecimento das mulheres como caçadoras vem à tona em um momento em que a antropologia está diversificando seus quadros, incentivando uma reavaliação de como as evidências são interpretadas.
Segundo Wall-Scheffler, os antropólogos, assim como qualquer pessoa, podem ser tentados por uma narrativa simples. “A complexidade é relegada à anedota”, disse ela. “Só temos que estar dispostos a cavar um pouco mais fundo.”
Mulher caçadora: a evidência fisiológica
Outros dois estudos, liderados por Cara Ocobock, professora assistente do Departamento de Antropologia e diretora do Laboratório de Energética Humana da Universidade de Notre Dame, em Indiana, nos Estados Unidos, e sua parceira de pesquisa, Sarah Lacy, antropóloga com experiência em arqueologia biológica na Universidade de Delaware, publicados simultaneamente na revista American Anthropologist em novembro de 2023, aprofundam a discussão. Suas descobertas indicam não apenas que as mulheres pré-históricas estavam envolvidas na caça, mas que sua anatomia e biologia femininas as tornavam intrinsicamente mais adequadas para essa atividade.
A pesquisa, que foi capa da edição de novembro de 2023 da Scientific American, desafia não apenas as narrativas históricas, mas também preconceitos modernos sobre as capacidades físicas femininas. “Em vez de vê-la como uma forma de apagar ou reescrever a história, nossos estudos estão tentando corrigir a história que apagou as mulheres disso.”, disse Ocobock
O estudo fisiológico destaca que as mulheres pré-históricas eram capazes de realizar tarefas físicas exigentes, como a caça, por períodos prolongados devido a fatores metabólicos. O estrogênio e a adiponectina, hormônios presentes em maior quantidade no corpo feminino, desempenhavam papéis cruciais no metabolismo, permitindo um desempenho atlético sustentado, além de protegerem contra danos durante atividades físicas intensas.
O estrogênio, por exemplo, ajuda a regular o metabolismo da gordura. “Como a gordura contém mais calorias do que os carboidratos, é uma queima mais longa e mais lenta”, explicou Ocobock, “o que significa que a mesma energia sustentada pode mantê-lo ativo por mais tempo e retardar a fadiga”. Já a adiponectina amplifica o metabolismo da gordura, permitindo que o corpo mantenha o curso durante longos períodos, especialmente em grandes distâncias, protegendo os músculos de rupturas.
Segundo Ocobock, a estrutura anatômica das mulheres também é considerada vantajosa para a resistência e eficácia na caça. “Com a estrutura de quadril tipicamente mais larga das mulheres, elas são capazes de girar os quadris, alongando os passos. E quanto mais passos você puder dar, mais ‘baratos’ eles serão do ponto de vista metabólico, e quanto mais longe você puder chegar, mais rápido”, explicou Ocobock.
“Quando você olha para a fisiologia humana dessa maneira, você pode pensar nas mulheres como corredores de maratona e nos homens como levantadores de peso”, conclui.
As descobertas arqueológicas também corroboram a participação ativa da “mulher caçadora”. Achados indicam que as mulheres pré-históricas não apenas compartilhavam dos riscos da caça, como também valorizavam essa atividade. Lesões traumáticas encontradas em fósseis de homens e mulheres sugerem uma participação igualitária em caçadas de contato próximo, contrariando a ideia de uma divisão estrita do trabalho por gênero.
“Encontramos esses padrões e taxas de desgaste igualmente em mulheres e homens”, disse ela. “Então, ambos estavam participando de caçadas de grande porte em estilo de emboscada.” Ocobock também cita a escavação feita no Peru, onde as mulheres foram enterradas com armas de caça. “Você não costuma ser enterrado com algo, a menos que seja importante para você ou algo que você usou com frequência em sua vida.”
Ao reconhecer as mulheres como caçadoras, a antropologia está desafiando narrativas históricas e preconceitos arraigados. A revelação do papel significativo das mulheres na caça não apenas redefine a história, mas também desafia estereótipos de gênero persistentes.
“Temos que mudar os preconceitos que trazemos para a mesa”, alerta Ocobock, destacando a necessidade de uma abordagem mais cuidadosa ao interpretar o papel das mulheres na história da caça. “E num sentido mais amplo, você não pode presumir abertamente as habilidades de alguém com base no sexo ou gênero que você atribuiu, olhando para eles”, concluiu Ocobock.
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com informações de agências
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