Em entrevista à Mídia Ninja, a sambista e deputada estadual (PCdoB-SP) fala sobre samba, política e os desafios de uma mulher negra atuar no parlamento.
Aos 75 anos, a sambista Leci Brandão é uma referência para a resistência negra. Ficou famosa por suas músicas – mas também pela sua representatividade no âmbito parlamentar. Em 2010, foi eleita pelo PCdoB a segunda deputada estadual negra da história da Assembleia Legislativa de São Paulo, sendo conduzida, em 2018, a seu terceiro mandato. Como parlamentar, dedica-se à defesa de mulheres, negros, indígenas, LGBT’s, dentre outros setores desprivilegiados da sociedade brasileira.
Nesta entrevista a Eduardo Sá, da Mídia Ninja, ela fala sobre samba, política e os desafios de uma mulher negra atuar no parlamento. Segundo ela, a tarefa agora é focar nas eleições municipais deste ano e conscientizar a população a votar de modo que suas necessidades se reflitam nas suas representatividades. Nesse sentido, a memória da liderança da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em março de 2018, serve como inspiração.
“O protagonismo da mulher está aí com efervescência”, diz Leci. “A morte da Marielle fez acontecer muita coisa politicamente e socialmente. Foi uma coisa que tocou todo mundo: uma mulher lutadora, guerreira, que foi ousada, corajosa e morreu daquele jeito. Isso mexeu muito com o brio das mulheres. Para 2020, vai ter muita mulher candidata a vereadora.”
Confira trechos da entrevista.
Ninja: Você tem uma vasta trajetória no samba há décadas. Como vê a geração que está vindo?
Leci Brandão: Vou me reportar mais a São Paulo, onde estou morando há mais de 20 anos, e estou no meu terceiro mandato popular, que mexe com cultura, educação e essas coisas, movimento negro, mulheres, população indígena, quilombolas, LGBTs. Essa questão do samba é uma coisa muito presente. Temos muitas comunidades de samba em São Paulo – tantas que resolvemos fazer um guia com as rodas, os endereços, o que acontece no local, etc. É um pessoal que não tem apoio – não existe incentivo, políticas públicas. Eles conseguem fazer as suas rodas sem nenhum patrocínio ou auxílio. Mas fazem uma coisa legal, que é a entrada com alimentos, e tudo que recebem é distribuído nas comunidades. É um trabalho social. Paralelamente a isso, existe o negócio da economia criativa. As senhoras que moram perto dessas comunidades fazem bolinho, pastel, etc., vendem ali e o pessoal tem onde comer enquanto está tocando o samba.
Ninja: Aqui no Rio tem a Rede Carioca de Rodas de Samba, que gira toda uma economia em volta da roda com gastronomia, vestimentas, artesanato, etc.
LB: Como acontece na Praça Tiradentes. Fiquei muito feliz quando soube pelos meninos da Festa da Raça que essa coisa da roda de samba está se espalhando. Não há uma mídia que mostre esse tipo de samba. Não dão visibilidade para esse trabalho riquíssimo, que tem uma legitimidade muito grande. Infelizmente, o que interessa são outras coisas, outros ritmos, letras – e essa rapaziada tem um trabalho autoral muito legal. O que acho mais importante nessas comunidades é justamente as pessoas terem a oportunidade de demonstrar seus trabalhos e o povo que está ali vai aprendendo e cantando. Isso é muito bom. Em relação à nova geração do samba, sei que tem muita gente boa no Rio de Janeiro e em São Paulo. É difícil selecionar. Tenho muito cuidado, porque posso citar 99, mas faltará aquele centésimo, que fica muito triste e arrasado. O que posso dizer é que fico muito feliz de ver que essa turma vai dar continuidade, que está preservando e não vai deixar cair.
Ninja: É aquela frase clássica do Nelson Sargento: “Agoniza, mas não morre”. Acho que o samba está um pouco distante de morrer, não?
LB: Está morrendo para quem só fica ligado na emissora de rádio e nas paradas de sucesso ou programas de TV. Para quem está na esquina, na praça, no bairro e acompanha esse pessoal, está tudo maravilhoso. Recentemente, aconteceu aquela roda das mulheres (II Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba – Ano Leci Brandão). Fiquei muito emocionada porque fui homenageada e não sabia. Houve um momento que tocaram em 16 estados do país, ao mesmo tempo, Zé do Caroço.
Ninja: Tem sido expressiva a inserção das mulheres no samba, um fenômeno que abrange muito além de apenas a interpretação musical nas rodas. Qual a sua avaliação sobre esse processo?
LB: É muito legal que agora estejam em evidência muitos grupos femininos, muitas meninas que tocam bem, não só percussão mas também harmonia. O protagonismo da mulher está aí com efervescência. As mulheres acordaram, e vou te dizer mais: a morte da Marielle fez acontecer muita coisa politicamente e socialmente. Foi uma coisa que tocou todo mundo: uma mulher lutadora, guerreira, que foi ousada, corajosa e morreu daquele jeito. Isso mexeu muito com o brio das mulheres. Para 2020, vai ter muita mulher candidata a vereadora – já estou sabendo, em vários estados, de mulheres negras, que é uma coisa que me fascina muito. Como os negros ainda não estão no poder, essa transformação que está ocorrendo será muito boa para a gente futuramente. Teremos um lugar de merecimento, legítimo, para brigar pelas demandas das mulheres negras. Elas são muito prejudicadas e injustiçadas, mas lutam muito.
Ninja: Você é uma parlamentar negra, como você vê a representação de vocês no parlamento?
LB: Na Assembleia Legislativa, onde estou, chegaram mais duas mulheres negras, e sei que fui referência para elas. Tanto a Erica Malunguinho como a Mônica Seixas, ambas do PSOL, sempre falaram isso. Nos ajuda porque a convivência ali é muito complicada. A vitória da Janaína Paschoal – que teve mais de 2 milhões de votos – arrastou 15 pessoas para lá. Ou seja, o PSL é a maior bancada hoje na Alesp. É muito complicado. A oposição diminuiu – a eleição (de 2018) foi muito difícil para a esquerda. A base do governo, o PSDB, o BolsoDória – de que falavam –, eles realmente são muitos, e nós, poucos. Mas pelo menos conseguimos uma coisa, que foi deixar para 2020 a reforma da previdência, que eles queriam fazer agora. Conseguimos barrar.
Ninja: Você participou de um conselho na pasta da igualdade racial no governo Lula [Leci foi a representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPOR)]. De uma forma geral, o Brasil é um país racista?
LB: É – e, inclusive, mandei botar um cartaz na porta do meu gabinete: “O Brasil é racista”. É uma coisa muito cruel. A polícia tem a cor da pele que ela vai prender ou enquadrar. Sabemos disso, até porque temos um fato real de um oficial que falou para sua tropa: “Homem pardo ou negro, em princípio, é suspeito”. A maioria da população carcerária é negra. Por isso, falei hoje durante o show: “Ninguém nasceu para ser bandido! Você nasce para ser feliz e trabalhar”.
Ninja: Você atribui a que isso? Qual foi o equívoco histórico após a abolição da escravidão? A falta de reforma agrária?
LB: Foi uma Lei Áurea mentirosa. Dizer que acabou a escravidão ali é uma mentira. Assina-se uma lei sem dar nenhuma estrutura para ninguém. Os negros ficaram sem eira nem beira, com uma mão atrás e outra na frente, sem nenhuma oportunidade. Com os imigrantes, foi diferente. Vieram para cá com toda condição, e a negrada ficou como está até hoje – morando nas favelas, nos morros, sendo empregados, domésticas, lavadeiras, cozinheiras, etc. Quando você vai ao shopping, vê a população negra tomando conta do banheiro ou limpando as mesas na praça de alimentação. Mas não vê uma mulher negra vendendo nas lojas. Sei exatamente onde vou encontrar meu povo.
Ninja: Caminhando para agenda positiva, com propostas. Como é possível avançar?
LB: Educação, manutenção das cotas, cursinhos gratuitos. O governo tem de fazer políticas públicas para ajudar a estruturar quem faz trabalho voluntário nas comunidades. Há uma juventude fantástica que está fazendo muita coisa legal, muito jovem ensinando dança, pintura, incentivando literatura – a rapaziada do hip-hop faz isso muito bem. Esses jovens artistas dialogam muito com a juventude, vão para dentro das favelas e fazem coisas maravilhosas sem incentivo. Os gestores não conseguem entender esse trabalho maravilhoso que essa galera está fazendo.
Ninja: Você, como sambista, obviamente deve ser uma militante da cultura. Como vê tudo que está acontecendo no cenário político?
LB: O governo Lula deu condições para os pobres irem às universidades. Foram criadas várias universidades federais e fizeram o Enem – porque você tem de mostrar acesso e uma caminhada de inclusão às pessoas. Todo mundo tem inteligência, mas é preciso dar oportunidade para que aprendam a exercitar isso. Não podemos, por exemplo, achar que todo menino que mora na favela tem de tocar tamborim. É legal tocar na escola de samba – mas ele pode aprender um violino, piano, pode ser um cientista. É só dar oportunidade. Mas nós não damos. Tudo isso inclui educação.
Ninja: E este governo e os aspectos conjunturais?
LB: Este governo é ruim, misógino, homofóbico, machista, racista. Não gosto desse governo, não tenho nada a falar. Para você ter uma ideia, quando eles aparecem na TV, eu mudo de canal. Eles se acham donos do Brasil, mas quem é dono desse país é o povo brasileiro.
Ninja: E quais são as perspectivas. O que a esquerda está fazendo em relação a isso?
LB: A gente tem de aproveitar a próxima oportunidade, que será nas eleições municipais. Procurar votar nas pessoas das suas comunidades, em gente que cuida de gente, pessoas em que você tem confiança e conhece, que é ali do seu habitat. Votar em gente como você, gente que você se reconheça nela. Não votar no cara porque ele é bonitinho, filho de não sei quem, de um empresário, senão fica a mesma coisa. Você vai continuar votando em dono de cidade, votando em quem já tem ou já é – e que não está nem um pouquinho preocupado com a sua situação.
Ninja: Você chegou a falar sobre mídia e participou de uma novela antigamente (Leci interpretou a revolucionária quilombola Severina na novela Xica da Silva, da TV Manchete, entre 1996 e 1997). No último Censo do IBGE, consta que o povo negro é mais da metade da população brasileira. Isso é bem representado na televisão e nos grandes meios de comunicação?
LB: Fui convidada pelo diretor da novela (Walter Avancini). Ele disse que me via como uma quilombola do século 20 e me chamou para fazer uma escrava revolucionária, a Severina. Ela tacava o terror no quilombo – tanto que morre cheia de tiro. Apesar de sermos a maioria, isso não se reflete na televisão. Temos atores e atrizes maravilhosos. Entretanto, quando os novelistas vão fazer o negócio, não tem papel para negro. É por isso que afirmo que o Brasil é racista. Se você é um produtor ou um novelista, por que não se lembra das famílias negras? Por que só pode dar papel de bandido, traficante? Existem famílias em que os filhos estão estudando, sabem comer na mesa, se vestir, toda uma população negra que não é mostrada. Estou querendo saber o porquê também.
Ninja: Fale um pouco mais da sua atuação parlamentar.
LB: Vários projetos nossos viraram lei e, no entanto, não vejo nenhum jornal falar sobre isso. Será que é porque sou uma parlamentar ruim? Acho que não. Nosso projeto mais recente, por exemplo, toca na questão da religião: você não pode perseguir ninguém administrativamente por esse motivo, senão haverá punições. A religião de matriz africana é muito perseguida porque é oriunda da população negra. Fizemos em São Paulo o Dia Estadual do Samba, o Dia de Ogum, de Iemanjá – coisas que reafirmam minha religião. No entanto, nunca vejo meu nome no jornal falando sobre essas coisas. Falam do samba, mas na parte política não vejo uma linha.
Ninja: Como é na rotina o tratamento dos demais deputados na Assembleia. Existe muito preconceito?
LB: No início, era aquela coisa: “Vai para casa, sambista”; “Vai ficar um ano só e olhe lá”. Não, estamos no terceiro mandato, tenho mais de 40 leis aprovadas, faço muitas audiências públicas. Criamos a medalha Theodosina Ribeiro, que lembra a primeira negra deputada em São Paulo nos anos 70 e premia dez ou 20 mulheres negras ou não que fazem trabalhos importantes. Entra líder comunitária, médica, advogada, mãe de santo, cantora, um pouco de tudo. É uma diversidade danada.
Por Portal Vermelho
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