Mamede Leão leu o inquérito e o processo e entrevistou várias pessoas e escreveu uma obra que, se não revela quem matou e mandou matar, é luminosa
Em “O Processo”, o tcheco Franz Kafka (1883-1924), que escrevia em alemão, conta a história de um homem que é processado e vilipendiado sem saber por quê. Há quem aponte aí a percepção da gênese do Estado burocrático que, mais tarde, levou à montagem da estrutura do governo nazista (o absurdo da liquidação dos judeus, com uma organização administrativa poderosa e eficiente, é visto como kafkiano). No livro, o indivíduo é destruído — praticamente “dissolvido” — pela máquina judicial, o coletivo, e os fatos não são esclarecidos. Por que o Estado está sempre certo? Talvez. O romance, obra de ficção, é, ao seu modo, um diagnóstico do universo da vida moderna.
Nós, jornalistas, acreditamos que, ao descrever um fato — de maneira rápida, raramente com a complementação do contexto, da história pregressa —, estamos transcrevendo a realidade de maneira ampla. Não é bem assim. Jornalismo é, no geral, um recorte, quase sempre minúsculo, da realidade. Por isso, quando se trata de uma história intrincada, raramente apresenta um quadro preciso do que aconteceu. Daí as frequentes reviravoltas e, até, contorcionismos verbais de repórteres e editores para explicarem ou justificarem falhas.
O historiador, jornalista, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e mestre em Geografia Enival Mamede Leão escreveu um livro, “Quem Matou ‘Oripão’? — Diamantes, Políticas, Festas e… Morte!” (Editora UEG, 265 páginas), que, muito bem feito, contém um roteiro praticamente pronto para ser levado ao cinema. Só que o pesquisador, criterioso e honesto ao tratar os fatos — ainda porosos e nebulosos —, não escreveu um livro “vingador”, “acusador” e “sensacionalista”. Não há nada disso no livro. O subtítulo da obra sintetiza a história que se descreve — tanto a respeito da possível verdade quanto da verdade que chegaram a construir, mas a sentença judicial enviou para o arquivo.
Eurípedes Pereira Ferreira — Eurípedes Três Ranchos, Oripão — era prefeito de Catalão, cidade mais próspera do Sudeste de Goiás, quando foi assassinado, em 2 de agosto de 1998, há 21 anos. Quem o matou? Mamede Leão fez aquilo que poucos fazem: revisitou a história a partir dos documentos, mas também decidiu entrevistar pessoas que conviveram com Eurípedes Pereira Ferreira. Os depoimentos orais são uma abordagem necessária, especialmente quando os documentos — no caso, os autos — não são esclarecedores. Na verdade, determinados depoimentos se tornam — senão de imediato, aos poucos — verdadeiros documentos. Pois o pesquisador leu tudo, cuidadosamente, para extrair mais do que parece expresso, mas sem forçar os fatos e dados e complementou com as entrevistas e, claro, sua interpretação.
Por que, exatamente, mataram Eurípedes Três Ranchos — que não chegou a ser chamado de Eurípedes Catalão? Não se sabe. Mamede Leão aponta caminhos, mas, como pesquisador consciencioso, não é conclusivo — afinal, é historiador (formado pela Universidade Federal de Goiás) e jornalista, não justiceiro.
Eurípedes Três Ranchos talvez tenha cometido um “pecado” crucial: transferir-se de Três Ranchos, cidade vizinha — onde era conhecido como Rei do Lago —, para Catalão. Esta cidade tem uma elite sedimentada, tanto política e empresarial quanto cultural, e parece rejeitar, em termos de poder, os chegantes. No caso, há uma especificidade. Uma das facções da elite percebeu que, para não permitir a volta de Haley Margon Vaz — uma das referências positivas do município, em termos administrativos e pessoais (é mecenas da educação) —, era preciso lançar um outsider, um político populista. Assim, os adversários de Haley Margon construíram uma frente ampla (inclusive com o apoio do deputado Pedrinho Abrão) e o derrotaram. Trata-se de algo parecido com a história do presidente Jânio Quadros. A UDN de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto tentava emplacar um presidente desde 1945, mas seus candidatos perderam para Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Os militares Eduardo Gomes e Juarez Távora não eram tão populares quanto seus adversários do PSD e do PTB. Na sucessão de JK, o udenismo, se lançasse um candidato de suas hostes, poderia perder pela quarta vez. Então, decidiu pelo lançamento de Jânio Quadros — um populista que não comungava de seus ideais (dizia-se que, na verdade, era “uisquezofrênico”) —, que derrotou o, digamos assim, Eduardo Gomes do PSD, quer dizer, o marechal Henrique Lott. Uma vez instalado no poder, em Brasília, Jânio Quadros decidiu pôr as asinhas para fora e mostrar independência. Não aceitou a tutela de Carlos Lacerda e companhia. Pressionado, o presidente renunciou, acreditando que voltaria nos braços do povo e, sobretudo, dos generais. Não retornou, claro.
Pois Eurípedes Três Ranchos, ao assumir, montou uma coalizão para administrar a cidade. O “chegante” percebeu, aos poucos, que estavam tentando transformá-lo em rainha da Inglaterra. Afinal, teria sido eleito única e exclusivamente para impedir a volta de Haley Margon e seu grupo político. Mas quem é eleito pelo voto popular ganha uma caneta cuja tinta dura até quatro anos. O que fazer com o prefeito — que havia se tornado, para alguns, um “trambolho”?
A instalação da Mitsubishi foi benéfica para Catalão. Hoje, tantos anos depois, ninguém discute que parte significativa dos recursos financeiros da prefeitura municipal deriva do ICMS pago pela montadora japonesa de veículos (controlada no país por brasileiros). O investimento público para atrai-la e mantê-la na cidade parece, portanto, justificado. Mas, ao criar a estrutura para a empresa, a prefeitura quase foi à bancarrota. Mão aberta, Eurípedes Três Ranchos não parecia um administrador altamente eficiente e, com a falta de recursos, a situação era agravada ainda mais. A Mitsubishi não é o foco do livro, mas Mamede Leão apresenta a questão de maneira adequada.
Se Haley Margon é mais gestor do que político, Eurípedes Três Ranchos era mais político do que gestor. Portanto, o problema seminal talvez nem fosse o custo da Mitsubishi — alto, evidentemente, para uma prefeitura então com parcos recursos —, mas a falta de capacidade administrativa do prefeito.
Não se mata ninguém por não ser administrador eficiente; no máximo, espera-se quatro anos e, por meio do voto, os eleitores, se quiserem, trocam-no. É o democrático. Eurípedes Três Ranchos, apesar de boa praça, era, tudo indica, um cabeça dura. Ganhou a eleição e, uma vez no poder, lutou para mantê-lo, enfrentando as forças internas — que queriam sua renúncia ou, no pior dos casos, o impeachment. O prefeito resistia e chegava a mostrar uma pasta com documentos, possivelmente com gastos pouco católicos de aliados ou quase-aliados. Algo que custava 30 reais, se o cliente era público, poderia muito bem sair por 300 reais — com o consequente embolsar de 270 reais.
Se havia uma disputa pelo poder, e se na eleição seguinte o grupo de Eurípedes Três Ranchos poderia não fazer o sucessor — dado o relativo descalabro na prefeitura —, a saída era eliminar o prefeito? Mamede Leão, pesquisador criterioso, não diz isto. Entretanto, aponta que aliados (ou aliado, no singular) queriam se livrar, ainda que politicamente, do gestor.
O assassinato de Eurípedes Três Ranchos tem mais a ver com política? Mesmo com o máximo de cuidado, Mamede Leão sugere que sim. Os assassinos — ou assassino — cometeram um crime profissional, tanto que, mais de 20 anos depois, não foram descobertos. O governo do Estado colocou na feitura do inquérito três de seus melhores investigadores — como Edson Scaramal, que chegou a trabalhar com o delegado federal Romeu Tuma —, mas eles não conseguiram apontar, de maneira cabal e irrefutável, o nome ou nomes dos assassinos e, se houve, do mandante ou mandantes. Três garimpeiros arrolados como “culpados” pela morte foram absolvidos pelo juiz Marcus Vinícius Ayres Barreto. As provas não eram consistentes; a rigor, nem eram provas (o magistrado, competente, entendeu com precisão o problema). Eles teriam “matado” para roubar, mas nada levaram de valor monetário (como um colar com diamantes). A casa estava revirada. Pode ter sido para simular “roubo”, mas “esqueceram” de levar o que havia de valor. É possível que estavam procurando documentos — quiçá denúncias graves de corrupção — e, ao mesmo tempo, queriam matar o prefeito?
Pode até parecer estranho, mas uma das virtudes do livro de Mamede Leão é não ser conclusivo, ou seja, não produz sensacionalismo nem gera confusão. Ao contrário, apresenta as informações e faz rápidos e certeiros comentários — sugerindo caminhos. Tal como Kafka, que mostrou como a burocracia pode ser devoradora — e, paradoxalmente, aceita por várias pessoas; Adolf Eichmann tentou convencer o júri em Israel de que era “apenas” um funcionário “administrativo” que cumpria a “lei” fielmente (matar judeus, ciganos, homossexuais e opositores políticos) —, o pesquisador aponta problemas nas investigações (que custaram mais de 200 mil reais) e sugere possibilidades que o apontam como uma espécie de “detetive da história”.
A história de que um esquadrão da morte de Mato Grosso, “A Firma”, pode ter matado Eurípedes Três Ranchos — teria recebido dinheiro de alguém de Catalão — é esmiuçada por Mamede Leão. Apesar de a história ser estranha, e de o denunciante, Jacy Alves da Silva, ter apresentado detalhes do crime — inclusive informações não divulgadas ou parcamente vulgarizadas —, a polícia, apesar de ter investigado, não levou a sério a história.
Deram dez tiros em Eurípedes Três Ranchos — um deles no pênis. Mas sua cueca não estava furada. O que reforça a possibilidade de que a cena do crime tenha sido manipulada pelos assassinos. Os captores do prefeito não o mataram de imediato? Parece que não. Chegaram a torturá-lo? Os tiros no pênis, no calcanhar, no joelho, na mão sugerem que estavam sugerindo que confessasse alguma coisa — a possível localização de documentos? Não se sabe. Porém, Mamede Leão conta tudo (inclusive sobre a suposta bissexualidade de Oripão; sua faceta mais conhecida era a de mulherengo) — o possível. O pesquisador infatigável tem mais informações, chega a admitir isto, mas não sabe exatamente quem é o assassino (ou assassinos) e quem é o mandante (ou, quem sabe, um consórcio de mandantes). Por isso apresenta fatos e, inclusive, as versões, mas não aponta o “responsável” ou “responsáveis” pelo crime brutal.
Certa feita, Mamede Leão deu carona para um homem. De repente, ele começou a falar sobre o assassinato de Eurípedes Três Ranchos. Carona? É provável que o homem tenha sido plantado na rodovia para conversar com o pesquisador? Ele queria saber o que o jornalista sabia? Não se sabe. “Conto a história, mas não revelo o nome do santo, até porque se trata de alguém que ainda está por aqui entre nós [em Catalão, por certo] e divulgar seu nome, caso de fato tenha a ver com o crime realmente, irá causar muito rebuliço na cidade.” Na conclusão, o pesquisador escreve: “Em nenhum momento quis identificar no livro quem matou ou mandou matar ‘Oripão’, muito menos especular que tenha sido fulano ou sicrano. (…) Não possuo convicção pessoal” a respeito “do assassino e muito menos do mandante, caso tenha tido”.
Em suma, um livro sério — muito bem escrito e fundamentado — e, se o crime não estivesse prescrito, poderia contribuir para reabri-lo. A pesquisa é uma prova de que o crime está “vivo” e, portanto, “não prescrito” (há uma história que se “recusa” a ser fechada). Kafka certamente aprovaria, não o crime, é claro, mas a grande história que Mamede Leão relata tão bem. Dostoiévski também a apreciaria, mas talvez se irritasse com o fato de que, se houve crime, não houve castigo.