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Pela 1ª vez desde a redemocratização, Brasil tem presidente que mitifica a ditadura

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“Eles nos querem mortos, mas nós estamos vivos!” Essa frase dita por Criméia Almeida, militante e ex-guerrilheira do Araguaia, é da escritora negra Conceição Evaristo. Ela diz que a frase carrega o sentido da resistência necessária para enfrentar o atual governo Bolsonaro, que faz apologia à tortura e ao regime militar.

No dia 31 de março de 1964, o Brasil viveu um dos seus períodos mais sombrios: o início da ditadura militar. A partir da madrugada do dia 1º para o dia 2 de abril, o golpe se consolidou e o poder foi tomado de vez pelos militares.

A investida militar aconteceu de forma orquestrada e com roupagem democrática. Um golpe do Poder Legislativo endossado pelo Poder Judiciário. No Senado, foi anunciado que o cargo da presidência estava vago quando o presidente João Goulart (PTB), o Jango, percorria o país em busca de apoio popular para promover as Reformas de Bases que visavam reduzir a concentração de terras e renda no país.

O mundo estava dividido pela Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Jango era próximo de países como Cuba e a União Soviética, fato que o deixou ainda mais pressionado para que ele rompesse com esses países considerados comunistas pelos EUA.

Em 11 de abril, o general Castelo Branco foi eleito pelo Congresso Nacional e assumiu a Presidência da República com a presença do Supremo Tribunal Federal. Os militares tinham prometido entregar o poder a um civil, mas isso não aconteceu. O país vivenciou 21 anos em que a democracia foi sufocada (1964-1985).

O golpe, que aconteceu com apoio do empresariado, de militares, grandes meios de comunicação, parte da Igreja Católica e da população contrária às Reformas de Bases propostas por Jango, teve como justificativa salvar o Brasil do comunismo – visão distorcida sobre os opositores ao regime que lutavam por liberdade e contra as violações de direitos humanos.

Os 21 anos da ditadura brasileira podem ser divididos em três fases: a primeira, em que se estabeleceu o regime autoritário por meio de decretos e de uma nova constituição, em 1967; outra com a avanço da repressão e da violência de Estado; e uma última etapa, em que houve abertura política e a promulgação da Lei de Anistia.

Por meio de 17 decretos institucionais, como o AI-5, foi proibida a concessão de habeas corpus para presos políticos e as perseguições aos considerados opositores do regime aumentaram. Todos eram considerados suspeitos. Qualquer um que não concordasse com o governo autoritário era chamado de opositor, mesmo aqueles que não fossem militantes ou de esquerda. Os perseguidos tiveram que sair do país e buscar exílio por conta da perseguição.

A imprensa foi censurada e a propaganda oficial do governo mostrava um Brasil que avançava sem problemas. Naquele período e até hoje, devido à limitação de informações, persiste um desconhecimento sobre as violações de direitos humanos ocorridas neste ciclo da história brasileira.

Hoje (31), completam-se 55 anos do golpe militar, e o atual presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), fez tentativas de comemorar a data e de silenciar os acontecimentos de um regime que registrou mais de 434 mortos e desaparecidos políticos. E dilacerou um país que guarda marcas desse período de barbárie até os dias atuais.Apenas 33 corpos foram localizados e identificados, e 377 agentes do Estado foram apontados como responsáveis pela repressão, de acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade de 2014. A Comissão foi instaurada durante o governo de Dilma Rousseff (PT), em 2012, e apurou as violências ocorridas entre 1964 e 1985.

O relatório descreve diversos tipos de violências a que foram submetidos os presos políticos: estrangulamento, asfixia, afogamento, choques elétricos, espancamento por militares e até uso de animais como cachorros, ratos, cobras e jacarés, além das mais várias torturas psicológicas.

Apesar de todas as evidências históricas de violações de direitos humanos como torturas, mortes e prisões, fechamento do Congresso Nacional, censura à imprensa e cassação de mandatos, o novo presidente brasileiro determinou ao Ministério da Defesa que fizesse as “comemorações devidas” pelos 55 anos do golpe militar. Por meio de seu porta-voz, Otávio Rêgo Barros, Bolsonaro fez uma declaração polêmica à imprensa, na última segunda-feira (25).

“O presidente não considera 31 de março de 1964 um golpe militar. Ele considera que a sociedade, reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se (sic), civis e militares, e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país em um rumo que, salvo o melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém”, disse.

Essa é a primeira vez desde a redemocratização que o governo é dominado por militares no primeiro e no segundo escalões, majoritariamente homens e brancos. Além do presidente da República, que é um capitão reformado, de seu vice – o general Hamilton Morão – e do porta-voz Rêgo Barros, há mais oito ministros oriundos das Forças Armadas.

Durante os 28 anos em que ocupou uma cadeira na Câmara dos Deputados como deputado federal, Bolsonaro fez repetidas declarações públicas a favor da ditadura militar e das ações executadas no período de chumbo.

Em 2014, ano que marcou os 50 anos do golpe, Bolsonaro, um deputado inoperante e praticamente invisível à época, fez uma fala de apologia à ação dos militares na ditadura. “Vocês vão ser torturados com algumas verdades aqui. Estamos aqui comemorando os cinquenta anos da gloriosa contrarrevolução de 1964. […] A nossa liberdade e democracia se deve em especial aos militares, que evitaram que o país fosse ‘comunizado’ em 1964”, disse no Congresso, enquanto seus colegas de mandato viraram às costas para ele.

Para analisar os traços desse período ainda hoje, o Brasil de Fato conversou com Ivan Seixas, militante político capturado aos 16 anos durante a ditadura, que assistiu à morte do pai após dois dias de tortura e que ficou seis anos preso. Ele afirma que não considera a comemoração do golpe pelo governo Bolsonaro uma novidade, pois o que ele vinha praticando ao longo dos anos como parlamentar já era um “marketing de ódio”.

“Bolsonaro é uma figura marginal na política. Ele sempre viveu à margem, fazendo provocações. Enquanto deputado, ele colocou um cartaz lá dizendo ‘quem procura osso é cachorro’, se referindo às famílias que buscam parentes desaparecidos. Ou seja, nem sensibilidade para fazer as declarações ele tem. Você está falando de pessoas, de famílias de quem foi torturado, morto, e cujo corpo está desaparecido. Então, nem reconhecer a dor do outro essa figura reconhece.”

Em nota, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que pertence ao Ministério Público Federal, salientou que: “Festejar a ditadura é apologia a atrocidades massivas”. Intelectuais de esquerda e vítimas da ditadura entraram com mandato de segurança no Supremo Tribunal Federal para impedir os festejos.O ex-ministro de Direitos Humanos do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Paulo Sérgio Pinheiro, e que fez parte da Comissão Nacional da Verdade (CNV), reitera ser um erro de comprovação histórica qualquer tipo de celebração, porque além da investigação feita pela CNV que comprova com uma série de depoimentos e documentos a brutalidade da ditadura, desde 1995, o Estado Brasileiro reconhece que os crimes cometidos nesse período são de responsabilidade do governo.

“Essa determinação para a comemoração de 31 de março de 1964 não corresponde ao que aconteceu nesta data. É lamentável que hoje as Forças Armadas queiram fazer isso, pois os militares responsáveis pelo golpe estão aposentados e impunes. É preocupante que um governo civil tenha tantos postos direcionados para militares mais do que no governo Castelo Branco”, ressalta.

A juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília, proibiu na última sexta-feira (29) que o governo de Jair Bolsonaro comemore os 55 anos do golpe de 1964. A Justiça atendeu a um pedido de liminar apresentado pela Defensoria Pública da União, que alegou risco de afronta à memória e à verdade, além do emprego irregular de recursos públicos nos eventos.

Um dia depois, no sábado (30), a liminar foi cassada pela Justiça Federal. A Advocacia-Geral da União (AGU) havia recorrido contra a decisão da juíza Ivani Silva. O pedido foi aceito pela desembargadora Maria do Carmo, corregedora da Justiça Federal da 1ª região.

Para Glenda Mezarobba, cientista política e ex-consultora da Comissão Nacional da Verdade, há uma retórica do medo, do constrangimento, da violência, censura e retrocessos de políticas de direitos humanos, mas são apenas tentativas.

“Há uma intenção de silenciar o que houve na ditadura, mas é impossível silenciar milhares de vítimas delas. Há episódios de reitores de universidade se posicionando que não vão aceitar pressão dentro das instituições, por exemplo, e que não haja o cerceamento da informação. Existe resistência. Entre o desejo do presidente e a realidade, há uma sociedade civil que segue viva e que tenta lidar com tudo isso”, afirma.

Na opinião de Mezarobba, o governo Bolsonaro tem sido incapaz de indicar respostas para a resolução de problemas que tem afetado o país. “Não há sinalizações para acabar com o desemprego, combater a fome e diminuir a desigualdade”, completa.

Um desses episódios em que Bolsonaro fez apologia à ditadura foi em 31 de agosto de 2016, dia da votação do impeachment da então presidenta eleita Dilma Rousseff. Bolsonaro homenageou em plenário o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça de São Paulo como torturador durante o regime militar. O então parlamentar chamou Ustra de “herói brasileiro” e de ser o terror de Dilma. O torturador comandou o Doi-Codi do II Exército de São Paulo, um dos principais centros de tortura do país. Bolsonaro foi processado pelo Conselho de Ética pela homenagem ao coronel.

Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador que Bolsonaro homenageou durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, foi o algoz de Crimeia Almeida, presa em São Paulo em 1972, após o AI-5. Crimeia foi torturada grávida até dar a luz. “Ele foi o primeiro a me espancar e torturar. Essa apologia ao terrorismo é um desrespeito às leis brasileiras e à Constituição, que foi uma resposta a violência de 1964.

Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”, na Assembleia Legislativa de São Paulo, Criméia contou que um suposto médico acompanhava suas torturas. “[Ele dizia:] ela aguenta a tortura nos pés e nas mãos, só não pode espancar a região da barriga.”

Depois de sofrer com a tortura e ficar presa no Doi-Codi de São Paulo, sob comando de Carlos Alberto Ustra, Crimeia foi transferida para Brasília, onde se investigava a guerrilha do Araguaia. Lá a tortura era psicológica. “Em Brasília não tinha tortura física, mas psicológica, com sessões de cinema com mortos decapitados, solitária, interrogatórios e ameaças”.

Ela teve seu bebê no hospital do Exército em Brasília e, todo o tempo, sofreu ameaças de sequestrarem seu filho. “Ou nós vamos mandar para o juizado de menores ou vamos adotá-lo e ele vai crescer como uma pessoa contra os seus princípios”. As intimidações também traziam uma conotação sexista e racista. “Se ele nascer homem, branco e saudável, ele seria adotado por militares”, recorda.

Em 2005, Criméia moveu uma ação declaratória contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra responsabilizando-o pelas torturas sofridas. Três anos depois, a Justiça de São Paulo acatou a ação, e Ustra se tornou o primeiro agente da ditadura a ser declarado torturador. Em 2012, ele teve seu recurso negado. Hoje, Criméia faz parte da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e mantém a sua atuação política.

Segundo Rogério Sottili, diretor executivo do Instituto Vladmir Herzog, a aproximação com a extrema-direita deixa o 31 de março ainda mais delicado. Ele reafirma, no entanto, a importância de se intensificar a luta contra a violência e a favor dos processos democráticos.

Neste dia 31 de março, será realizada a Caminhada pelo Silêncio, a partir das 16 horas, da Paulista ao Parque Ibirapuera em que será cobrada a revisão da Lei da Anistia, recomendação esta publicada no relatório da Comissão Nacional da Verdade. Para Sottili, este é o momento de ratificar a memória, a justiça e a verdade.

“Somente a partir de uma reinterpretação da Lei da Anistia é que crimes políticos, de lesa humanidade ou de tortura não sejam passíveis de anistia e seus responsáveis sejam punidos e, finalmente, [pode] se fazer justiça. Se a gente fizer isso, a gente está sinalizando para todas as pessoas idiotizadas que vangloriam torturadores que eles não podem fazer isso, porque senão serão presos”.

Por Brasil de Fato

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