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Paulo Kliass: A tragédia da ocupação e a lógica do capital

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A tragédia ocorrida no dia 01 de maio no centro de São Paulo exprime, infelizmente, de forma bastante nua os níveis de desigualdade e de injustiça tão cruéis que caracterizam a sociedade brasileira. A forma como os grandes meios de comunicação e alguns dos principais líderes da direita abordaram o assunto não nos oferece nada mais do que raiva, nojo e asco.

Por Paulo Kliass*

De acordo com essa abordagem tão típica de parte das elites de nosso País, os responsáveis pelo acidente, pelas mortes e por todo o tipo de perdas ocorridos durante aquela madrugada seriam as pessoas que ocupavam o imóvel vazio pertencente à União.

Além da enésima tentativa de criminalizar o movimento de ocupação por moradia, busca-se a todo custo trazer o elemento da disputa político-partidária para a cena do triste acidente. Essa estratégia vai desde a oportunística e mentirosa acusação a Guilherme Boulos de liderar aquele movimento até a instigação de elementos de xenofobia e preconceito contra os necessitados que ali moravam.

Ora, o pré-candidato a Presidência da República pelo PSOL deixou claro que o MTST não era responsável pelo grupo que havia ocupado o antigo edifício da Polícia Federal em local estratégico da região central da capital paulista. E a existência de famílias de estrangeiros em condições de precariedade dentre os acidentados deveria mais é aumentar nossa sentimento de solidariedade com relação a esses grupos e não de repulsa, como tentam fazer os porta-vozes da direita e da intolerância.

O drama social que a maior parte da população atravessa é histórico e tem se aprofundado em anos recentes pela política de austerícidio adotada desde 2015. Trata-se de um verdadeiro absurdo o patamar elevado de nossa concentração da propriedade fundiária, tanto nos espaços urbanos quanto no universo rural.

Sob qualquer forma de metodologia de cálculo, está mais do que provado que o gigantesco e vergonhoso déficit habitacional seria parcialmente resolvido com a destinação adequada dos edifícios e demais construções urbanas que estão atualmente sem uso ou sem destinação nas principais cidades brasileiras. Os próprios números oficiais apontam para a existência de um número superior a 7 milhões de imóveis vazios, boa parte deles com a possibilidade de uso imediato. Esse número é superior à quantidade de famílias sem moradia.

Moradia na cidade e terras no campo

No caso do campo, a situação é ainda mais gritante e escandalosa. Os altos níveis de concentração da propriedade rural provocam a marginalização crescente de setores expressivos da população, que antes desenvolviam algum tipo de atividade agrícola. A pulverização organizada dos movimentos de ocupação de áreas improdutivas e de luta por Reforma Agrária por todo o território nacional é resultado de tal política excludente.

A tentativa de criminalização das ações do MST e dos movimentos congêneres faz parte da estratégia de evitar a exposição de mais essa chaga patrocinada pelas elites de uma sociedade que se habituou a conviver com a naturalização da desigualdade e da miséria.

Assim como é inconcebível aceitar passivamente o drama vivido pelos grupos sociais desde sempre marginalizados nos ambientes urbanos, a prioridade concedida ao agronegócio inviabiliza a inclusão de setores expressivos que pretendem continuar vivendo no campo. Há terras suficientes para todos no território nacional, mas a política oficial marginaliza os mais frágeis, dificultando o acesso à terra e às condições de vida e de produção de alimentos.

E assim perpetua-se a contradição de uma população que passa fome e vive dificuldades de nutrição e alimentação, ao passo que a produção quase toda do agronegócio destina-se à exportação e à engorda de animais. Assim, os próprios responsáveis governamentais ignoram os estudos oficiais, apontando que mais de 70% da comida que chega à mesa dos lares brasileiros tem sua origem na pequena propriedade familiar. Não existem dúvidas de que esse é o caminho para alcançar a justiça social e também para se atingir níveis razoáveis de segurança alimentar.

No entanto, nem tudo aquilo que parece ser lógico e razoável se transforma em políticas públicas. A adoção de um modelo diferente esbarra na lógica do capital, em particular pela forma como ele se articula no interior de nossas fronteiras. Simples assim. E vejam que nem se trata de qualquer tipo de proposta de revolução ou coisa parecida.

Trata-se tão somente da implementação de reformas na órbita mesma da dinâmica do capitalismo. Os movimentos sociais lutam por “propriedade” fundiária nos espaços urbano e rural. Mas o nível de desigualdade e de concentração de riqueza que caracteriza nossa estrutura social é de tal monta que a simples tentativa de democratizar o acesso a esse tipo de bem é encarado como perigoso e revolucionário. Uma insanidade!

Reforma agrária e reforma urbana: oposição do capital

As sociedades do espaço europeu e boa parte dos chamados países desenvolvidos realizaram há mais de dois séculos suas respectivas reformas agrárias. Trata-se de uma reorganização do sistema de produção agrícola nos marcos do próprio sistema capitalista. Além disso, boa parte desses mesmos países contêm modelos habitacionais urbanos que privilegiam a função de moradia dos imóveis e não apenas a sua utilização como forma de especulação imobiliária ou de mera apropriação rentista. E isso tudo também nos limites da chamada “boa e velha ordem burguesa”.

A sociedade brasileira precisa dar um basta nesse tresloucado processo de mercantilização crescente de suas atividades. Cada vez mais quase tudo ao nosso redor se transforma em expressões que só podem ser visualizadas por meio de sinais como preço, quantidade, lucro, rentabilidade e contrato. Por meio dessa transfiguração radical, direitos sociais básicos passam a ser considerados como simples mercadorias, a exemplo do que ocorre com saúde, educação, previdência social, transporte público, saneamento, segurança, lazer, informação, etc.

Essa é a mesma lógica que sustenta a perpetuação da desigualdade fundiária. Para aqueles que se apoderaram do reduzido e seleto espaço no topo-do-topo da pirâmide, pouco importa que a Constituição assegure o direito à moradia em seu art. 6º ou que o mesmo texto exija o cumprimento de função social da propriedade no artigo imediatamente anterior. O que vale mesmo é a velha prática de exclusão violenta e o recurso ao poder do Estado para assegurar a vigência desse privilégio imoral e amoral.

Afinal, via de regra trata-se de propriedades cujas histórias remontam a expropriação abusiva, apropriação ilegal ou doação do próprio setor público. São esses alguns dos casos clássicos da nossa “acumulação primitiva de capital” tupiniquim, de onde atributos tão em moda, como meritocracia e eficiência do empreendedor, quase sempre passaram longe, mas muito longe mesmo.

Estado forte para assegurar direitos sociais

Os próximos meses serão marcados pela intensificação do debate eleitoral, onde se espera que projetos de Nação sejam discutidos por aqueles que pretendem se candidatar ao Palácio do Planalto e demais cargos em disputa pelo Brasil afora. Dentre os temas mais urgentes encontra-se o debate acerca da necessidade de recuperar o protagonismo do Estado para desenvolver suas políticas públicas.

Afinal, a triste tragédia do prédio ocupado no coração da maior cidade brasileira significa mais do que as duras imagens de seu desmoronamento e o abandono dos desabrigados. Ela escancara de forma simbólica a falência da opção liberal, aquela que propõe que os direitos sociais possam ser plenamente atendidos apenas por meio da livre ação das forças de mercado.

Não tenhamos ilusões. A lógica de funcionamento do capital é cruel, fria e egoísta. Os fundos financeiros que foram chamados pelo governo atual e anteriores a se ocuparem de áreas estratégicas como educação e saúde não se apresentam em nada preocupados com o nível de ensino da população ou com o atendimento verificado nos hospitais, clínicas ou laboratórios. A sua única motivação é o ganho financeiro, o retorno sobre o montante de recursos investidos. E ponto final.

O mesmo raciocínio vale para a questão da moradia nos espaços urbanos. Sem intervenção dos poderes públicos na organização das atividades nas metrópoles e nas cidades em geral, a lógica do capital em liberdade de ação segue destruindo o espaço coletivo para benefício próprio. A formulação de políticas habitacionais de interesse social é fundamental para atender às necessidades de uma enorme população que não possui recursos monetários para ver suas necessidades de moradia serem atendidas segundo as regras do mercado.

Não faltam propostas apontando para mecanismos de solução da crise habitacional. Elas vão desde o aperfeiçoamento de ideias interessantes subjacentes ao programa “Minha Casa Minha Vida” até uma política integrada de recuperação de edifícios abandonados nos centros das grandes capitais, sempre passando pela garantia de fundos públicos para financiar esse tipo de operação de natureza social.

A única certeza é que esse tipo de programa necessita de vontade política e de coordenação do setor público. Afinal, a lógica do capital isolada é perversa e pouco afeita a solucionar equações do jogo social, em especial aquelas cujo conteúdo implique desconcentração de renda e de patrimônio.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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