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Escravidão não é só algema e açoite, diz procuradora do Trabalho

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Por Joana Rozowykwiat

Reprodução

“A portaria é absurda tanto do ponto de vista formal – porque uma portaria não poderia derrogar a lei –, quanto do ponto de vista material. O que está sendo dito ali é um retrocesso inimaginável, para um país que tem o reconhecimento internacional pela sua luta contra o trabalho escravo”, avaliou Débora Tito, que é coordenadora regional de Erradicação do Trabalho Escravo em Pernambuco.

O artigo 149 do Código Penal define que quatro elementos podem caracterizar trabalho escravo: servidão por dívida, condições degradantes, jornada exaustiva e trabalho forçado. Passando por cima desta legislação, a portaria estabelece que, para ser considerada a jornada exaustiva ou a condição degradante, é necessário haver privação do direito de ir e vir do trabalhador.

De acordo com a procuradora, o Ministério retrocede na definição do conceito de trabalho escravo e restringe a sua tipificação a uma situação que nem mesmo antes da abolição da escravatura existia necessariamente.

“A portaria restringe o trabalho escravo só à situação das algemas. A escravidão nunca foi justa, mas já foi legal. E, mesmo na época em que ela era legalizada, muitas vezes os trabalhadores tinham o direito de ir e vir. Tanto que vários quilombos foram formados assim. Os trabalhadores não estavam necessariamente em cárcere privado, mesmo quando a escravidão era legal”, criticou Débora.

Ela destacou que a liberdade tolhida pelo trabalho escravo não é simplesmente a de ir e vir, como sugere a portaria. “Ao ler o texto, a gente só pensa numa figura do trabalhador sendo açoitado, algemado. E o trabalho escravo não é só isso. Você ser propriedade de outrem é você estar com sua dignidade ferida ao ponto de você ser um objeto. O trabalho escravo cerceia a liberdade de autodeterminação, a liberdade de o cidadão se entender como um ser livre. Não é apenas o cerceio físico ou estar em cárcere privado”, disse.

A portaria estabelece ainda que a divulgação da chamada “lista suja”, que reúne as empresas e pessoas que usam trabalho escravo, passará a depender de uma “determinação expressa do ministro do Trabalho”. Pessoas físicas ou jurídicas incluídas na lista não podem solicitar financiamento público.

“Além disso, [o texto] diz que autos de infração têm que ser lavrados com boletim de ocorrência, fotografias, enfim, uma série de exigências. Ele realmente amarra toda a constatação de que há trabalho escravo, tanto do ponto de vista formal, quanto na própria atuação dos auditores no momento da inspeção. Nesse ponto, também é um desastre, porque cria requisitos que praticamente impossibilitarão a autuação por trabalho escravo. Até quando se encontrar alguém em cárcere privado vai ser difícil”, previu a procuradora.

Ela apontou ainda uma “usurpação de poderes”, com a publicação das mudanças definidas pelo Executivo. “Está havendo uma interferência evidente do Executivo no Judiciário. A instância administrativa agindo como se fosse uma instância judicial”, afirmou, reiterando que a portaria é inconstitucional.

Na prática, as alterações – que agrada à bancada ruralista, às vésperas da análise da denúncia contra Temer por organização criminosa e obstrução de Justiça – dificultam a punição de flagrantes situações degradantes.

Para Débora, o fato de a própria Secretaria de Inspeção do Trabalho não ter sido consultada sobre as mudanças na regra só reforça a ideia de que a portaria atende a objetivos políticos. “É algo totalmente político. É mal redigida, vai contra a legislação. O próprio órgão do Ministério do Trabalho que lida com isso não sabia de nada. Para mim, isso é a comprovação de que foram motivações políticas, e do pior tipo de política. Uma moeda de troca com setores conservadores, que são pegos pelo bolso. O vil metal está mandando de novo”, lamentou.

Depois de ter sido denunciado pela Comissão Pastoral da Terra em corte internacional, o Brasil passou a reconhecer formalmente, em 1995, a existência do trabalho escravo no país. A partir de então, uma série de medidas foi adotada, entre elas a criação do grupo móvel de fiscalização, o seguro-desemprego para trabalhadores resgatados, a prioridade para inserção no Bolsa Família.

De lá para cá, 40 mil pessoas foram resgatadas da condição de trabalho escravo, e o Brasil ganhou o reconhecimento internacional pelas boas práticas na erradicação desse mal.

Agora, depois das alterações anunciadas nesta segunda, o país deve começar a ser visto como exemplo a não ser seguido. O coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Antônio Carlos de Mello Rosa, classificou a portaria como uma regressão, que, a uma só vez, impede a fiscalização e esvazia a chamada “lista suja”.

Segundo Débora Tito, as novas regras findarão por esconder o problema, maquiando as estatísticas. “Eles estão colocando o conceito de um jeito que vão vender o peixe de que se erradicou o trabalho escravo, mas que, na verdade, será deixar de olhar o problema como ele é. Estão colocando a legislação de forma que não se vai mais conseguir configurar o trabalho escravo. Ninguém vai mais conseguir atuar nesse sentido. Então vão zerar os dados, não porque se resolveu a questão, mas porque não se olha mais o problema”, encerrou.

Nesta terça (17), o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho recomendaram ao governo Michel Temer que revogue a portaria  que mudou as regras para a fiscalização do trabalho escravo. O Grupo de Trabalho Erradicação do Trabalho Escravo, da Defensoria Pública da União (DPU) também emitiu nota em repúdio às alterações.

Portal Vermelho

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