Por José Luiz Fiori*
Este tipo de divisão e luta interna, não é um fenômeno novo ou excepcional – se repetiu em vários momentos do Século XX – toda vez em que foi necessário responder a grandes desafios e tomar decisões cruciais no plano internacional.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com a entrada dos EUA na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais, ou com a saída norte-americana das Guerras da Coréia e do Vietnã, e em vários outros momentos mais recentes, sem que isto tenha alterado a “marcha forçada” dos EUA, na direção do “poder global” que foi construindo a partir do fim da Segunda Guerra. O mesmo deve acontecer, de novo, neste início do século XXI, independente do que venha a acontecer com o mandato do presidente Donald Trump. E isso, porque existem dois consensos fundamentais, dentro da elite americana que se mantém constantes, a despeito de suas brigas internas e de quais sejam os seus partidos e facções no governo:
1. no campo das ideias, o consenso com respeito ao papel de liderança e comando militar que os EUA devem ter dentro do sistema mundial;
2. no campo material, o compromisso comum com a reprodução e expansão permanente da infraestrutura militar – humana e material – indispensável ao exercício deste poder global.
Graças a este consenso fundamental, a “grande estratégia” dos EUA, no campo internacional, segue sempre em frente, independente das “trepidações internas” da sociedade americana, orientada por dois objetivos fundamentais:
a) o objetivo da “segurança estratégica” dos EUA, envolvendo a prevenção ou eliminação de toda e qualquer ameaça aos seus interesses nacionais e militares, em qualquer ponto do mundo; incluindo o controle naval e aeroespacial de todos os “fluxos” relevantes para o exercício desta supremacia estratégica global.
b) com ênfase particular na “segurança energética” das forças militares e econômicas dos EUA e de seus principais aliados, com o controle do acesso às principais fontes de energia, mantendo seu direito ao bloqueio instantâneo, – em caso de necessidade ou beligerância – do acesso a elas, por parte dos seus concorrentes ou inimigos.
Deste ponto de vista, pode-se entender porque será quase impossível que prospere a proposta do presidente Donald Trump de mudar nas relações dos EUA com a Rússia, procurando definir em comum acordos e responsabilidades específicas em “áreas estratégicas” e “zonas de influência” definidas de comum acordo. O presidente Barack Obama já havia ensaiado um movimento nesta direção, no início do seu primeiro mandato, mas foi prontamente demovido deste seu objetivo inovador, pelo establishment americano, e pelo seu próprio partido. Porque isto exigiria da Rússia a aceitação e legitimação do poder global americano, e envolveria, como contraparte, a aceitação norte-americana da existência de áreas compartilhadas e/ou exclusivas, sob influência ou controle russo.
Mas sobretudo porque esta despolarização da relação entre os dois países, deixaria vago o papel vem sendo cumprido pela Rússia neste último século e meio, como o “inimigo necessário” que funcionou como referência e como princípio organizador da estratégia militar da Inglaterra, na segunda metade do século XIX, e da estratégia global dos Estados Unidos, no Século XX. Um mesmo inimigo comum que cumpriu durante quase dois séculos, o papel de organizador e hierarquizador dos objetivos estratégicos e do planejamento militar das duas grandes potências anglosaxônicas, e, em menor grau, também, dentro da Europa, da França e da Alemanha. Por isso, hoje de novo, sem o “inimigo russo” o “império militar” americano perderia sua “bússola” e teria que sucatear uma parte importante de sua infraestrutura global que foi construída com o objetivo específico de conter, enfrentar e derrotar a Rússia, envolvendo um investimento em recursos materiais e humanos absolutamente gigantescos.
Deste ponto de vista, o ingresso da China é – sem dúvida – a grande novidade do sistema interestatal, nestas duas primeiras décadas do Século XXI, e representa de fato uma ameaça de médio prazo à supremacia econômica e militar dos Estados Unidos no Leste Asiático, e na Ásia Central. Mas ainda não é uma ameaça global, nem se transformou no foco da “grande estratégia” norte-americana, entre outras coisas, porque não dispõem da capacidade atômica russa de destruir o território americano. Deste ponto de vista, deve-se prever com toda certeza que enfrentamento dos EUA com a Rússia ainda seguirá sendo o grande guarda-chuva e a principal justificativa do uso cada vez mais frequente e generalizado, pela política externa norte-americana, das chamadas guerras de “quarta geração”, ou “híbridas”, na sua relação com as potências intermediárias, e com os países da periferia do sistema.
Apesar de que o próprio colapso da URSS, nos anos 80/90, possa ser considerado como o experimento pioneiro e bem sucedido das “guerras de quarta-geração”, este tipo de guerra só passou ser utilizado pelos EUA, como um instrumento regular e frequente de sua política externa, a partir das “revoluções coloridas” da Europa Central, e das “primaveras árabes” do Norte da África, generalizando-se a partir daí para quase todas as partes do mundo, inclusive para América do Sul. Uma sucessão de intervenções que transformou este tipo de guerra, na segunda década do século XXI, num fenômeno quase permanente, difuso, descontínuo, surpreendente, e global.
Trata-se de um tipo de guerra que não envolve necessariamente bombardeios, nem o uso explícito da força, porque seu objetivo principal é a destruição da vontade política do adversário, através do colapso físico e moral de seu estado, de sua sociedade, e de qualquer grupo humano que se queira destruir. Um tipo de guerra que usa a informação mais do que a força, o cerco e as sanções mais do que o ataque direto, a desmobilização mais do que as armas, a desmoralização mais do que a tortura. Pela sua própria natureza e seus instrumentos de “combate”, trata-se de uma “guerra ilimitada”, no seu escopo, no seu tempo de preparação e na sua duração. Uma espécie de guerra infinitamente elástica que dura até o colapso total do inimigo, ou então se transforma numa beligerância contínua e paralisante das forças que se dividiram e foram jogadas umas contra as outras, por fatores internos, mas com a contribuição decisiva da potência interventora.
Neste novo contexto, a própria defesa da democracia e dos direitos humanos – que marcou a última década do século passado – perdeu relevância, porque são intervenções que não tem limites éticos. Além disto, essa nova guerra não tem nenhum compromisso com a reconstrução do “adversário” como aconteceu, por exemplo, com a reconstrução do Japão e da Alemanha, e com o próprio Plano Marshall, destinado à reconstrução europeia, depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Não está mais garantido nem mesmo o acesso privilegiado ao mercado interno dos EUA, como ocorreu com a Coreia, o Japão e vários outros países destruídos e depois ajudados pelos EUA.
O que tem sido oferecido, na situação atual, é apenas o velho cardápio do rigor fiscal, da abertura econômica, e da privatização e desmontagem dos estados, proposto desde o início dos anos 90, pelo chamado “Consenso de Washington”. Por analogia, muitos analistas falam de uma nova Guerra Fria, ou de uma Terceira Guerra Mundial, quando se referem a este estado de guerra intermitente e contínuo do Século XXI. O importante, entretanto, é compreender que o fenômeno da guerra adquiriu um novo significado e uma nova duração dentro do sistema internacional, e dentro da estratégia de poder global dos Estados Unidos. Em grande medida graças à própria necessidade endógena de reprodução e expansão contínua do “império militar” americano que foi construído durante a segunda metade do Século XX, mas que se expandiu significativamente depois do fim da Guerra Fria.
Por fim, é muito importante que se entenda, sobretudo no caso dos vivem na “periferia norte-americana”, que acabou definitivamente o tempo da “hegemonia benevolente”, com seu compromisso irrestrito e universal com a democracia, e com sua proteção seletiva de alguns casos de desenvolvimentismo e de bem-estar social. Além disso, trata-se de um processo irreversível, cujo futuro, entretanto, permanece inteiramente imprevisível.
José Luís Fiori é professor titular de economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e consultor do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas para o Setor de Óleo e Gás (GEEP/FUP).
Fonte: FUP
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