Categories: Sem categoria

Luiz Gonzaga Belluzzo: O país da Casa-grande

Spread the love
FacebookFacebookTwitterTwitterRedditRedditLinkedinLinkedinPinterestPinterestMeWeMeWeMixMixWhatsappWhatsapp

Engenho de Itamaraca, de Frans Post

Desde a transição democrática de meados dos anos 80, o povo brasileiro contempla, entre perplexo e cada vez mais desencantado, o espetáculo da mudança sem esperança ou, como dizia um crítico de Adorno, “a realização das esperanças do passado”.

Assim os senhores da terra concebem o progresso. As eleições diretas sucumbiram diante do Colégio Eleitoral. A nau de Ulysses encalhou nas praias do transformismo e os náufragos do regime militar saltaram alegremente para bordo.

Na eleição de 1989, o Caçador de Marajás saiu do quase anonimato para ser promovido como mercadoria nova, produzida nas retortas dos marqueteiros e exposta nas vitrines da mídia de resultados, sob os aplausos e a chuva de grana despejada pelo patriciado nativo.

Em 2017, os senhores da casa-grande e seus fâmulos apostam na reconstrução das esperanças do passado: acenam com candidaturas habilitadas a empurrar, outra vez, o País para a modernidade dos marqueteiros.

Nesse barco navegam os cosmopolitas da finança e dos negócios, uma fração majoritária das classes médias – ilustrada, semi-ilustrada e deslustrada –, as velhas oligarquias regionais e a cambada da tripa-forra que quer sempre se locupletar sem esforço.

A democracia dos patrícios, observada de uma perspectiva realista e sombria, revela a enorme capacidade de sobrevivência dos poderes dos donos. Depois do interregno de três mandatos comprometidos com programas de avanço popular, o povo brasileiro assiste ao eterno retorno do mesmo: mudam as máscaras, mas não os rumos, nem sequer os pretextos.

Há de se admirar o requinte dos poderosos em embalar o automatismo psíquico dos cidadãos abandonados aos realejos das mídias.

As almas dos paneleiros vibram as cordas do atraso oligárquico em consonância com a hipermodernidade da barbárie “internética”, que intoxica o ambiente social com a nuvem de ignorâncias.

As baixarias revelam, sobretudo, indigência cultural e desprezo absoluto pelos valores do liberalismo político, o que nos coloca na rabeira do processo civilizador ou, se quiserem, na vanguarda do movimento de retorno à idade da pedra lascada. O Estado Democrático de Direito não “pegou” na Terra de Santa Cruz. Seus princípios jazem inertes nos compêndios.

Entre mortos e afogados flutua impávida a estrutura do poder real. Mandam e desmandam os mesmos grupos de sempre, reforçados agora pela presença dos yuppies cosmopolitas da finança globalizada.

A grande inovação dos tempos, além da internet e do celular, é a porta giratória entre as mesas de operação das instituições financeiras e as burocracias econômicas executoras dos projetos e programas da privataria.

Nesse bloco hegemônico não faltam os serviçais da mídia, infatigáveis em apresentar esses companheiros de jornada como portadores de um saber superior, o único capaz de assegurar, aos olhos dos mercados financeiros, a credibilidade da política econômica.

Mais que isso, as normas do mercado passaram a ditar as regras da vida política. No Brasil de hoje, essa lógica fatal vem contaminando as instâncias decisivas do poder estatal. O sistema partidário e o financiamento das campanhas eleitorais parecem engendrados com o propósito de transformar o Congresso num mercado de balcão, onde os gritos de “compro” e “vendo” tornam ridícula a hipocrisia dos discursos moralistas dos plenários.

Para não colocar em risco o poder dos donos, Temer e seu entourage sacaram do coldre a pistola armada com a bala de prata do parlamentarismo.
Com mais esse truque de violação da soberania popular, imaginam criar as condições políticas para amainar as angústias da sociedade e embalar a economia. Entrevada na cadeira de rodas do desajuste fiscal e imobilizada na camisa de 11 varas das reformas anacrônicas, a economia brasileira avança indômita para o passado.

Temer, o Ilegítimo, deveria ter à cabeceira A Odisseia. Recomenda-se reler diariamente, especialmente a passagem em que Ulisses, advertido por Circe, tapa os ouvidos da tripulação e se amarra ao mastro do navio para resistir ao canto das sereias.

Nos tempos do regressismo nacional, elas vão continuar entoando o canto mortal que celebra as excelências da desigualdade gestada nos salões fétidos da casa-grande.

Não se deve supor que os sucessivos desastres e malfeitorias institucionais produzidos pelos desmandos do impeachment sejam capazes de comover as lendárias criaturas. Como as sereias de Homero, elas anunciam maravilhas e promovem desgraças. A palavra de ordem para os navegantes da periferia é avançar nas “reformas” e, se necessário, espalhar o terror entre os que resistem.

No livro A Dialética do Esclarecimento, escrito em parceria com Horkheimer, Adorno palmilha os caminhos que levaram o projeto das Luzes a se precipitar nos braços do mito. A recaída do esclarecimento na mitologia, diz ele, não deve ser buscada tanto nas ideologias nacionalistas, pagãs e em outras mitologias modernas, mas no próprio esclarecimento paralisado pelo temor da verdade.

“Paralisada pelo temor da verdade”, a equipe econômica dos sonhos do mercado permanece espremida entre a mitologia da austeridade expansionista e os manuais de instrução das arrumadeiras de casa ou de alfaiates especializados em ajustar fatiotas.

Fâmulos de abstrações tão ridículas quanto perniciosas para a massa desempregada, as personagens oníricas entregam-se à faina de correr atrás dos maus resultados com promessas destrambelhadas.

Com tais expedientes ridículos, os sábios da finança tratam de ocultar a opressão imposta às mulheres e homens que se levantam na madrugada para trabalhar nas cidades e nos campos do Brasil-sil-sil. Enquanto perseguem a desqualificação mesquinha e indigente dos critérios da política democrática, apresentam como inexorável a agenda dos mercados.

O arbítrio, o favorecimento, o segredo, a obscuridade e o nepotismo eram os demônios que os valores da República restaurada pretendiam exorcizar. Pois os curupiras da Pátria Amada estão aí, livres e folgazões, gargalhando sobre as nossas incríveis esperanças.

 Fonte: Carta Capital

 

FacebookFacebookTwitterTwitterRedditRedditLinkedinLinkedinPinterestPinterestMeWeMeWeMixMixWhatsappWhatsapp
Blog do Mamede

Recent Posts

Pobre JK!

Pobre JK Angelo Cavalcante Juscelino era atento, observador e político de diálogo; longe, bem longe,…

10 horas ago

PT denuncia agressão de deputado bolsonarista e exige punição rigorosa

PT denuncia agressão de deputado bolsonarista e exige punição rigorosa Representação protocolada pelo presidente do…

18 horas ago

Lindbergh Farias: “PL da Anistia é para Bolsonaro se safar da cadeia”

Lindbergh Farias: “PL da Anistia é para Bolsonaro se safar da cadeia” Líder do PT…

18 horas ago

STF proíbe prefeito de SP de converter guarda em Polícia Municipal

STF proíbe prefeito de SP de converter guarda em Polícia Municipal   Ministro do STF…

18 horas ago

Morte do trabalhador senegalês acentua críticas à violência policial em SP

Morte do trabalhador senegalês acentua críticas à violência policial em SP   Para a deputada…

18 horas ago

Enem 2025: isenção da taxa pode ser solicitada até 25 de abril

Enem 2025: isenção da taxa pode ser solicitada até 25 de abril   Pedidos começaram…

18 horas ago