Quando me aconteceu o improvável, reagi com uma ética que surpreendeu até mesmo a mim. Ele estava na minha casa e eu não contei nada a ninguém! Ele era capa de jornais, reportagem em rede nacional, assunto nas redes sociais: afinal, onde estava o Belchior? Sentado no balcão da minha cozinha, tomando uma taça de vinho e conversando comigo sobre João Cabral de Melo Neto, Bob Dylan e João Goulart (“sempre pensavam que éramos parentes”).
Não, não foi sonho ou delírio (nem mesmo alucinação!). As geografias do Belchior nunca foram simples. Na voz do cantor o espaço, mais do que o tempo, era possibilidade. Ele saiu da nortista Sobral para o centro do país, rodou o Brasil e o mundo como embaixador de uma voz que era simultaneamente cearense, nordestina, brasileira e latina, até refugiar-se na pacata e uruguaia Artigas. Quando fomos nos topar, em novembro de 2012, Belchior era o trend topic da imprensa nacional. Um dia antes, havia sido visto circulando no bairro Moinhos de Vento. Eu recém havia defendido minha dissertação de mestrado sobre jovens em situação de rua quando encontrei o cantor e sua companheira Edna após uma noite vagando pelo bairro Floresta, Porto Alegre.
Levei-os para meu apartamento, ofereci cama, banho, roupas, comida, descanso e o mais importante: blindagem à cobertura jornalística. Aí ficaram por cerca de 40 dias, tempo em que compartilhamos jantares, dedilhados de violão, narrativas de vida e outros momentos assustadoramente íntimos. Prometi a mim mesmo e selei o pacto com meus familiares e amigos mais íntimos que não falaríamos nada. Futuramente, uma reportagem de uma revista de circulação nacional viria à tona mapeando os últimos passos de Belchior. Havia uma lacuna, um espaço de tempo não coberto, justamente o quando Belchior havia sido meu hóspede. Na foto da reportagem, ele aparecia com meu blusão, que com alegria cedi quando foram embora. Pensei comigo que no momento da sua morte eu compartilharia tudo publicamente.
Ocorre que ele se foi e eu me peguei desprevenido. Parte de mim ainda imaginara que eu poderia encontrá-lo, revê-lo, voltar às conversações que tanto me fizeram felizes nessas poucas semanas juntos. Não reclamo! Tive a oportunidade de ter em minha casa o meu grande ídolo. Mas por outro lado, lamento imensamente, pois sei que a tristeza e a impotência tiveram participação no fim de sua jornada terrena. Obrigado, Mestre! Ainda ressona forte o grave da tua voz me dizendo “Professor”. Espero que teu legado artístico e político nos dê fôlego para respirar em tempos que vivemos comedimento democrático. Aos antigos, relembremo-lo. Aos jovens, escutemo-lo. Quanto a mim, posso dizer que “pela Geografia aprendi que há no mundo um lugar onde um jovem como eu pode amar e ser feliz”.
César Augusto Ferrari Martinez é professor na Universidade Federal de Pelotas (RS).
Fonte: Correio do Povo
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