Por José Gomes Temporão* e Lena Lavinas**
O Congresso acaba de aprovar a Lei 8.305, que tipifica o crime de feminicídio. Significa dizer que a antiga reivindicação do movimento de mulheres e feministas foi, finalmente, validada pela sociedade brasileira. Quando mulheres são assassinadas por serem mulheres, configura-se crime hediondo, a partir de agora inafiançável. Portanto, aqui há o que comemorar!
Por outro lado, a cada dois dias morre no Brasil uma mulher vítima de abortamento. O que pensar quando um médico, desrespeitando o código de ética ao qual prestou juramento, infringe a lei que estabelece que toda mulher em processo de abortamento deve ser atendida e acolhida com respeito e humanidade? Essa é a postura indutora da morte de mulheres que ousaram contestar um destino definido por outros — sem sequer o benefício da empatia que deve sustentar o cuidado em saúde. Essa postura, que leva mulheres a morrer apenas por serem mulheres, não significaria uma prática deliberada de extermínio daquelas que ousaram contestar seu destino de mulher?
A ONU já recomendou que fosse revista a legislação que criminaliza o aborto no Brasil e em outros países latino-americanos, por ser absolutamente incompatível com o direito à vida, à dignidade e à segurança das mulheres.
Existem cerca de 30 projetos de lei no Congresso, contrários à descriminalização do aborto, com o intuito de aumentar a punição das mulheres ou mesmo proibir os casos hoje acolhidos na lei. Diante do não acesso a métodos seguros de interrupção da gravidez em prazo recomendado inclusive pelo Conselho Federal de Medicina (até 12 semanas), muitas mulheres já buscam outros países para praticar um aborto seguro. Estamos voltando a uma situação que prevalecia na Europa dos anos 60, quando somente alguns poucos países tinham legalizada a prática.
A criminalização do aborto no Brasil não impede que ele seja realizado e não reduz a sua incidência, mas impede que os casos sejam devidamente notificados e aumenta o risco para a saúde e a vida das mulheres, sobretudo das negras e mais pobres. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2009 mostrou que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez pelo menos um aborto. Em metade dos casos, utilizaram medicamentos para a indução do último aborto. Em cerca da metade desses, houve internação pós-aborto.
Enquanto o debate se mantém restrito ao âmbito religioso, moral e filosófico, o Sistema Único de Saúde (SUS) atende a mais de 220 mil mulheres por ano em razão de complicações oriundas de curetagens pós-aborto, sejam elas resultantes de abortos espontâneos ou inseguros.
A verdade encoberta pela hipocrisia é que o aborto inseguro e a clandestinidade são fatores de morbidade e de mortalidade materna no país entre adolescentes e jovens, de todas as raças e etnias, atingindo, sobretudo, aquelas em situação de pobreza. Não fosse crime no Brasil, médicos e hospitais fariam o procedimento com tranquilidade e mulheres pobres teriam acesso a um serviço seguro, longe de métodos cruéis que, quando não matam, deixam sequelas irreversíveis, físicas e psíquicas.
Ademais, aumenta também a desinformação. Métodos simples, baratos e seguros já estão disponíveis em muitos países, mas não entre nós. Todos os dias, a imprensa divulga, com alarde, notícias sobre o comércio ilegal de drogas abortivas, fechamento de clínicas e prisão de profissionais de saúde envolvidos nesses processos. Todos os que estudam o tema sabem que essas medidas são absolutamente inócuas e que o aborto continua sendo praticado em larga escala neste país, que parece ter optado por fechar os olhos para essa grave questão de saúde pública e de cerceamento a um direito individual das mulheres. Até quando?
*É sanitarista e ex-Ministro da Saúde; **É professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: Fundação Perseu Abramo
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