Por Leandro Moraes Vidal*
Uma demonstração de enorme vitalidade política, quando comparada à apatia e uniformidade de projetos que tem caracterizado tantos processos eleitorais ao redor do globo.
No final, a pequena margem de três pontos percentuais (pouco mais de três milhões de votos) que deu a vitória à Dilma Rousseff, se bem que mostre o equilíbrio das forças em disputa, pode ser considerada uma grande vitória popular. Para apreciar a magnitude desta vitória, é preciso observar quais verdadeiramente eram os partidos em disputa, para além das siglas. Em um sistema eleitoral totalmente corrompido pelo poder econômico (situação típica das grandes democracias liberais modernas), derrotar o candidato que contava com apoio integral do sistema financeiro e do mais poderoso oligopólio nacional de mídia do planeta não pode ser considerada uma pequena conquista. Pelo contrário, configura um resultado de profundo significado histórico, e consolida o papel central do Brasil na construção de uma ordem mundial mais justa e democrática. Afinal, quantas nações no planeta são hoje capazes de contrariar, nas urnas, os mercados? Quantos povos puderam realmente optar, no contexto da grave crise global, por uma política econômica que prioriza a classe trabalhadora ao invés dos bancos, preservando-a do desemprego e do arrocho salarial, ao ignorar as receitas destrutivas de austeridade fiscal?
Ainda mais significativa do que a vitória em si, a enorme energia popular mobilizada em torno da candidatura de Dilma, especialmente no segundo turno, pode ter potencial para apontar novos caminhos de superação das contradições e impasses do ciclo de governos progressistas iniciado com Lula em 2003. É importante compreender que a vitória jamais teria acontecido sem o apoio de movimentos sociais e setores da oposição à esquerda, que souberam se posicionar diante da possibilidade do retrocesso civilizacional representado pela candidatura de Aécio Neves, ainda que sejam críticos e se sintam desiludidos com a política praticada pelo governo nestes doze anos. Mais importante, a esquerda que caminhou junto ao PT no segundo turno não o fez com um mero voto de protesto, mas em grande medida como reconhecimento e valorização do compromisso humanista de inclusão social que é a maior virtude dos governos de Lula e Dilma.
Neste sentido, as eleições de 2014 parecem ter sido um grande aprendizado político para forças sociais que vinham fazendo oposição sistemática ao governo, muitas vezes por falta de avanços em temas específicos, e que não vinham considerando adequadamente a realidade concreta de que: a) não existe hoje uma alternativa mais progressista de governo para o país; b) pode-se e deve-se construir esta alternativa mais avançada e transformadora em diálogo e compromisso com as grandes organizações de massa e os intelectuais que fazem parte do bloco de forças do governo petista; c) derrotar o PT e seus aliados não deixará o país mais próximo de nenhuma transformação social, pelo contrário, representaria agora uma enorme derrota popular, e provavelmente implicaria em um violento processo de reação conservadora, só comparável ao desencadeado pela queda de João Goulart em 1964.
A partir de 2015, diante de um Parlamento ainda mais conservador e pulverizado do que o atual, e saindo de uma disputa em que a direita demonstrou também possuir enorme capacidade de mobilização, Dilma e o PT terão mais do que nunca que se mostrar a altura do enorme esforço popular que sua vitória eleitoral significou. Mas, para isso é inadiável que o governo volte a tomar a iniciativa política, o que só pode ser feito mantendo a coesão do campo progressista que o elegeu, num difícil equilíbrio entre conciliar política parlamentar e gestão do Estado às crescentes demandas sociais. Pode-se objetar, com razão, que esta é uma tarefa relativamente fácil de se formular de maneira abstrata, e praticamente impossível de se por em prática. Mas muitos passos concretos podem ser dados. E o contínuo deslocamento do PT para o centro do espectro político, a burocratização de uma cúpula partidária cada vez mais distante dos problemas do povo, a incapacidade de avançar na reforma agrária e nos direitos indígenas, as hesitações em matéria de direitos humanos e as alianças regionais com alguns dos setores mais atrasados do latifúndio certamente não nos colocam no caminho certo.
Por outro lado, a caminhada de doze anos de governos populares ensinou aos partidos deste campo (fundamentalmente PT e PCdoB na base aliada de Dilma, mas há ainda alguns quadros comprometidos em outros partidos que a compõem) a ter um olhar muito mais realista e aprofundado sobre a formação social brasileira. O conhecimento prático das enormes potencialidades do povo e do território e da localização das linhas de maior e menor resistência junto ao bloco das elites, bem como das limitações de se conquistar somente o Poder Executivo da República sem obter hegemonia nas demais esferas (notadamente o Judiciário), e do alto custo cobrado pela renúncia à disputa ideológica na esfera da cultura e da produção da narrativa histórica… Todo este conjunto de experiências históricas constitui não só um enorme patrimônio político, mas devem ser considerados na construção de um programa simultaneamente realista e transformador para o Brasil.
Já se conhecem as principais linhas deste programa: reforma política que valorize a participação popular, democratização de todas as esferas da vida social através da criação e ampliação dos conselhos participativos, reforma agrária e urbana, desmonte dos monopólios privados de comunicação. No fundo, nada muito além da efetivação do pacto social materializado na Constituição de 1988, ainda por realizar-se completamente.
A inevitabilidade deste reencontro com nossa história talvez seja a maior lição que a campanha de 2014 poderá deixar. A esquerda no governo, se quiser continuar a ser assim chamada, não poderá mais se dar ao direito de esquecer que a razão de sua existência são os séculos de luta do povo brasileiro por liberdade e justiça, e de forma mais concreta, as lutas recentes contra o neoliberalismo e a Ditadura Militar, que forjaram nossas lideranças, nossos sindicatos, nossos partidos. A vitória obtida nas urnas é somente mais um capítulo desta longa trajetória.
*Leandro Moraes Vidal é mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Uma versão impressa desse texto será publicada na próxima edição da revista alemã Brasilien Nachrichten, para a qual foi originalmente escrito, e a quem agradeço o estímulo para sua redação.
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