O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, deu nesta quarta-feira (18/9) voto favorável ao cabimento dos Embargos Infringentes na Ação Penal 470, o processo do mensalão, e assim fechou o julgamento em 6 a 5 pela admissibilidade do recurso. Último a votar na questão, o decano desempatou o julgamento, e assim garantiu a 12 réus o direito de ter parte de suas condenações revista pela corte.
Celso de Mello acompanhou a divergência aberta pelo ministro Luís Roberto Barroso e os votos do revisor, Ricardo Lewandowski, e dos colegas Dias Toffoli, Rosa Weber e Teori Zavascki. Ficaram vencidos o relator e presidente do STF, Joaquim Barbosa, e os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio.
Em seu longo voto de minerva, o decano reafirmou o que já havia dito no dia 2 de agosto do ano passado, quando reiterou que os Embargos Infringentes estão previstos no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e não foram, assim, suprimidos pela Lei 8038, de 1990.
Nos últimos dias, diversas manifestações na imprensa e da sociedade civil fizeram coro pela rejeição dos Embargos Infringentes. Alinhadas à tese do relator e presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, afirmam que a Lei 8.038 de 1990, que regulamentou o trâmite de processos no STF e no STJ, teria revogado implicitamente o dispositivo que trata dos Embargos Infringentes. O recurso está previsto no artigo 333 do Regimento Interno do STF e necessita de pelo menos quatro votos divergentes pela absolvição para ser admitido.
Celso de Mello disse que a corte não pode deixar se influenciar pelo clamor popular e nem pela pressão das multidões, sob pena de abalar direitos e garantias individuais.
“[Juízes] não podem deixar contaminar-se por juízos paralelos resultantes de manifestações da opinião pública que objetivem condicionar a manifestação de juízes e tribunais. Estar-se-ia a negar a acusados o direito fundamental a um julgamento justo. Constituiria manifesta ofensa ao que proclama a Constituição e ao que garantem os tratados internacionais”, afirmou.
Celso também fez referência ao Pacto de São José da Costa Rica, que prevê o duplo grau de jurisdição como direito de todo réu. “O direito ao duplo grau de jurisdição é indispensável. Não existem ressalvas [quanto a isso] pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”, disse Celso de Mello.
Para demonstrar que o legislador reconheceu cabimento dos Embargos Infringentes e optou por sua manutenção, Celso de Mello lembrou que, em 1998 o presidente Fernando Henrique Cardoso enviou para o Congresso uma proposta que acabava com os infringentes. Os parlamentares, entretanto, rejeitaram a ideia.
Dos 25 condenados, 12 terão direito aos Infringentes: João Paulo Cunha, João Cláudio Genu e Breno Fischberg, no caso de suas condenações por lavagem de dinheiro; e José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoino, Marcos Valério, Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Kátia Rabello e José Roberto Salgado, no caso de formação de quadrilha. Simone Vasconcelos poderá recorrer contra a condenação por formação de quadrilha, já prescrita, e contra as penas aplicadas pelos crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
Ordem jurídica
O ministro começou se referindo às condições sob as quais a sessão de julgamento da última quinta-feira foi encerrada (12/9). Os longos votos dos ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio foram atribuídos, por advogados e juristas que acompanharam o julgamento, como expediente para que o voto de desempate do decano fosse adiado. O presidente da corte, ministro Joaquim Barbosa interrompeu a sessão apesar do pedido de Celso de Mello para votar.
O decano disse que o encerramento da sessão na semana passada, “seja qual foi sua causa”, teve sobre ele um “efeito virtuoso”, o levando a “aprofundar sua convicção” já firmada. Conhecido por votos longos e minuciosos, o decano não fez concessões na sessão desta quarta. Atacou ponto por ponto dos votos dos colegas que se posicionaram contra a admissão dos embargos, abordando, para tanto, do Direito imperial português à teoria geral dos recursos.
Em resposta ao argumento de que a supressão implícita da norma regimental se daria por força de uma lei superveninente, observou aos colegas que o Legislativo, a quem compete exclusivamente a disciplina da matéria, já havia se manifestado por sua manutenção. Sobre a ideia da norma legal prevalecer sobre um dispositivo regimental, demonstrou que a Constituição é que estabelece quando uma ou outra predomina. Não poupou ainda argumentos e exemplos pinçados da jurisprudência afim de contrapor o voto do ministro Luiz Fux, que havia dito que o duplo grau de jurisdição era um mito e que o Brasil não precisava se submeter a tratados internacionais. Chegou até mesmo a explicitar a relevância formal da condição de quatro votos pela absovição para a admissão do recurso em resposta à provocação do ministro Gilmar Mendes, que havia se referido a necessidade de quatro votos divergentes como um “número cabalístico”.
Em uma fala que se estendeu por mais de duas horas, o ministro fez um apelo ao que chamou de prevalência da racionalidade jurídica, que não pode ser submetida “à mercê da vontade e do arbítrio” da coletividade. Antes de abordar a parte mais técnica do seu voto, Celso de Mello disse que, embora todo o poder emane do povo, a representação popular junto ao Poder Judiciário não é exercida diretamente e, portanto, não se dá no campo das escolhas políticas, mas da aplicação do Direito. “Só a ordem jurídica constrói”, disse ao defender o respeito incondicional às diretrizes do Direito.
Citando o juiz federal Paulo Mário Canabarro, o ministro criticou abertamente a manipulação do clamor público para se interferir em um processo que deve ser restrito ao ambiente institucional. “Assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem entendido qualificar‐se como abusiva e ilegal a utilização do clamor público como fundamento da prisão preventiva, esse ilustre magistrado federal, no trabalho que venho de referir, também põe em destaque o aspecto relevantíssimo de que o processo decisório deve ocorrer em ‘ambiente institucional que valorize a racionalidade jurídica’”, reiterou o ministro.
Celso de Mello disse ainda que ninguém, independente da gravidade do crime cometido, pode ser privado das garantias fundamentais do direito de defesa, independente da vontade antagônica da coletividade. “O que mais importa, neste julgamento sobre a admissibilidade dos embargos infringentes, é a preservação do compromisso institucional desta Corte Suprema com o respeito incondicional às diretrizes que pautam o ‘devido processo penal’ e que compõem, por efeito de sua natural vocação protetiva, o próprio ‘estatuto constitucional do direito de defesa’, que representa, no contexto de sua evolução histórica, uma prerrogativa inestimável de que ninguém pode ser privado, ainda que se revele antagônico o sentimento da coletividade”, assinalou em seu voto.
O ministro fez uma defesa enérgica da atuação “independente e imune” do tribunal frente ao que qualificou de “indevida pressão externa”. Para o decano, embora todos os cidadãos da República tenham o direito à livre e ampla liberdade de crítica, os julgamentos pelo Poder Judiciário não podem se deixar comprometer por pressões de qualquer ordem.
Reserva legal e procedimental
O primeiro grande argumento do ministro para acolher a admissão dos Embargos Infringentes se embasou na conclusão de que a questão sobre a admissibilidade ou não desse tipo de recurso é de competência exclusiva da política legislativa. Celso de Mello referiu-se ao voto do ministro Teori Zavascki ao observar que compete ao Congresso Federal se pronunciar sobre o tema.
“Não se presume a revogação tácita das leis”, disse criticando a ideia de que se pode subentender a revogação de uma norma mesmo que uma lei não trate de sua supressão.
“Sob tal perspectiva e adstringindo-me ao atual contexto normativo ora em exame, tenho para mim […] que ainda subsistem no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nas Ações Penais originárias, os Embargos Infringentes que se referem o Artigo 333, Inciso 1º, do Regimento Interno da corte, que não sofreu no ponto, segundo entendo, derrogação tácita ou indireta em decorrência da superveniente edição da Lei 8038/1990,que se limitou a dispor sobre normas meramente procedimentais, concernentes às causas penais originárias”, disse.
Rejeitando as conclusões no sentido de que o silêncio da lei sobre o cabimento dos infringentes era “eloquente” sobre sua inadmissibilidade, Celso de Mello disse que o silêncio é, de fato, eloquente porque foi consciente e intencional, ou seja, o legislador se absteve, de forma voluntária, de disciplinar o que já estava regulado em sede regimental.
Para o ministro, o fato da Lei 8.038 não se referir ao cabimento dos infringentes, não pode, portanto, ser visto como uma lacuna normativa involuntária ou inconsciente. “ Não é um descuido ou inciência do legislador”, disse o ministro. Celso de Mello referiu-se ainda à manifestação do ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Hamilton Carvalhido, que observou que a revogação tácita de uma norma só ocorre quando a nova lei regular inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
Para Celso de Mello, é falsa a ideia de que há uma hierarquia rígida entre a reserva constitucional de lei e a reserva constitucional dos regimentos dos tribunais, sendo que a primeira prevaleceria sobre segunda automaticamente. Em referência a um voto do então ministro do STF Paulo Brossard, no julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre a tensão normativa entre a regra legal e o procedimento regimental, o ministro observou que não se pode afirmar sempre que a lei se sobrepõe ao regimento ou que este se sobrepõe aquela. “É preciso determinar os domínios temáticos que a Constituição traçou, estabeleceu e delineou”, disse. “Dependendo da matéria regulada, prevalece uma ou outra”, disse em referência ao voto de Brossard.
Mas o argumento mais incisivo do decano a favor da admissibilidade dos recursos foi o de que cabe ao Poder Legislativo decidir, com exclusividade, sobre a extinção ou não da norma. Para demonstrar que o legislador entendeu pela manutenção do do dispositivo citado no Artigo 333 do Regimento do STF , Celso de Mello citou uma exposição de motivos encaminhada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que resultou num projeto de lei enviado ao Parlamento e que previa mudanças no Código de Processo Civil, na Consolidação das Leis do Trabalho e na própria Lei 8038. Naquele momento, lembrou o ministro, o Executivo reconheceu que a lei de 1990 não tratou da extinção dos Embargos Infringentes nas ações penais originárias no STF, tanto que sugeriu sua supressão.
A proposta foi rejeitada pela Câmara dos Deputados, que usou como base o voto do então deputado federal pelo Rio Grande do Sul Jarbas Lima, que afastou, por sua vez, a abolição e supressão dos infringentes na corte suprema por entender que esse tipo de recurso representa um “importante canal tanto para a reafirmação ou modificação” do entendimento do colegiado.
Comprometimento internacional
O ministro Celso de Mello também abordou a questão do comprometimento do Estado brasileiro com tratados e decisões de cortes internacionais de direitos humanos. Na semana passada, o ministro Luiz Fux havia afirmado que o Brasil, por questões de soberania, não precisava se submeter a princípios firmados por tribunais e tratados estrangeiros e que o duplo grau de jurisdição era um mito jurídico.
O decano disse que, embora não exista uma relação de hierarquia entre o sistema jurídico doméstico e o âmbito das cortes internacionais, há, sim, o compromisso legal que obriga o Estado brasileiro acatar e adotar esses princípios. “Os jornais noticiaram que a República Bolivariana da Venezuela repudiou esse compromisso que assumira anteriormente, [compromisso] que o Brasil mantém íntegro”, disse.
Publicado originalmente na página do Enock